INTRODUÇÃO GERAL
PACTO DE LAUSANNE - Comentário de Jonh Stott
Lausanne, 30 anos depois - Ricardo Wesley Borges - Secretário
Geral da ABUB
Em 1974 houve um
Congresso Mundial de Evangelização em Lausanne, do qual resultou um documento
chamado Pacto de Lausanne no final da década de 80. Ricardo Wesley Borges
utilizou tal documento para aprofundamento dos estudos e compreensão das
Escrituras com relação ao trabalho missionário. Wesley entendeu que a fé não
exigia separação entre dimensão da salvação pessoal do indivíduo e de uma
adequada preocupação integral com o ser humano em seu todo, e com as questões
que afetam o mundo em que vivemos, pois o Evangelho afeta todas as dimensões da
vida. Pacto de Lausanne: documento produzido durante um congresso na Suíça que
contou com 2.700 participantes, vindos de diferentes regiões do planeta. Marco
que moldou mais de uma geração de líderes da igreja de vários continentes.
Uma história
emocionante
Em meio à crise do café, Joaquim lutava na década de 30 para
sustentar sua família. Ao se defender de uma tocaia, fere o vizinho com um tiro
e o deixa com sérias seqüelas e um processo contra si por perdas e danos. Morre
de um ataque cardíaco ao saber que teria que pagar uma indenização e perder as
terras que cultivava o café. Eulália, grávida do sexto filho, fica viúva com um
futuro incerto e sombrio. Havia uma igreja Presbiteriana que ajudava na medida
do possível os necessitados com comida, remédios e amizade. Esta igreja apoiou
o luto de Benedita, que enterrara sua filha por ter sido morta com pneumonia
asmática. Essa forma de tratar da igreja comove Benedita, que ouve o Evangelho
e decide batizar. Lembra de Eulália, que precisava conhecer aqueles crentes. Na
igreja, cada membro, com suas habilidades, dispensa ajuda para Eulália:
dentista, cabeleireiro, e emprego para os mais velhos. A família se vê
reconstruída, e conta com o amor redentor e transformador de Deus. Eulália
volta-se para o Senhor e decide educar seus filhos nesse evangelho que a
alcança em todas suas necessidades.
O evangelho tem que chegar de maneira integral e redentora. Não
havia o Pacto de Lausanne nesta época, mas havia o evangelho que inspirou o
pacto, além da influência de outros movimentos da igreja de Cristo que ao longo
da história procuraram não fazer dicotomia entre evangelização e a ação social
consciente e transformadora.
Você já ouviu
falar do pacto de Lausanne?
Ricardo Wesley Borges descreve como surgiu o Pacto de Lausanne:
Graduados das mais diversas áreas vindos do mundo todo, reuniram-se para
estudar teologia, procurando um melhor preparo para o trabalho missionário a
ser realizado em contextos variados. João era um dos brasileiros a participar
do estudo latino-americano de teologia e contribuiu com comentários temperados
a partir de sua preocupação acerca dos inúmeros problemas sociais. Perguntaram
se ele se guiava pela teologia da libertação. (Teologia da libertação- Surgiu
nos países de 3º mundo e toma como ponto de referência a experiência dos pobres
e sua luta pela libertação e o caminho da igreja ao lado dos oprimidos. Deus
toma partido dos pobres de um modo especial). João estudou na Inglaterra na
Faculdade Cristã Todas as Nações e aprendeu a refletir sobre a missão de uma
maneira sistematizada. Então, na Inglaterra, Ricardo Wesley ouve falar do
documento chamado Pacto de Lausanne, vinte anos após a redação deste documento,
que diz que evangelização e ação social são ambos parte do nosso dever cristão.
Este documento, escrito na Suíça, produz uma agenda importante de reflexão e
ação quanto à responsabilidade social.
Para refletir: De que maneira esse Pacto de Lausanne,
desconhecidos de tantos em nossas igrejas evangélicas brasileiras, pode ser
apontado como uma referência importante para nossa pauta de reflexão e ação?
O Pacto de Lausanne não foi vanguarda de um processo de reflexão
teológica que incluía uma agenda importante de compromisso social, mas teve um
alcance e influência mundial a respeito da agenda de missão. Houve influência
no processo de reflexão pré-Lausanne e na redação final do Pacto. Desde a
realização do Primeiro Congresso Latino-americano de Evangelização (Clade I,
1969) e depois com a criação da Fraternidade Teológica Latino -Americana (1970)
reconhece-se que teólogos evangelicos latino-americanos começaram a influenciar
o debate teológico e missiológico em nível mundial, e tal influência foi
sentida na preparação, execução e desdobramento do Pacto de Lausanne.
O congresso foi um momento em que o mundo ouviu a voz dos
teólogos latino-americanos, tomando expressões de suas palestras e citando-as
literalmente no Pacto de Lausanne.
Duas palestras proferidas em Lausanne: A evangelização e o
Mundo, com René Padilha e A Evangelização e a Busca Humana da Liberdade,
Justiça e Realização Pessoal com Samuel Escobar. Abordagens que levam a sério a
integridade do evangelho, procurando fazer pontes reais com os desafios que
nosso mundo nos apresenta. Se Lausanne não era novidade, em que sentido seu
pacto se torna um marco importante? Na maneira como ele aponta a possibilidade
de, dentro de um contexto de bases de fé consideradas evangélicas, encontrar uma
referência sólida e bem fundamentada acerca da importância da atuação da igreja
no mundo. Lançaram-se bases importantes para atuação missionária evangélica
séria, engajada e comprometida com o que se convencionou chamar de teologia da
missão integral.
Parágrafo 5º do Pacto: Parágrafo tido por Ricardo Borges como o
mais importante.
"Afirmamos que Deus é o criador e juiz de todos os homens.
Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela reconciliação
em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de toda forma de
opressão. Sendo o ser humano feito à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção
de raça, classe social, cor, cultura, sexo ou idade, possui uma dignidade
intrínsica em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos, às vezes,
considerado a evangelização e a ação social mutuamente incompatíveis. Embora a
reconciliação do homem com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação
social e a evangelização, nem a libertação política e a salvação, afirmamos que
a evangelização e o envolvimento sócio-político são parte do nosso dever
cristão. Ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e
do homem, do nosso amor para com o próximo e da nossa obediência a Jesus
Cristo. A mensagem de salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda
forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de
denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando alguém recebe a
Cristo, nasce de novo no seu reino, e, conseqüentemente, deve buscar não
somente manifestar como também divulgar a sua justiça em meio a um mundo ímpio.
A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de
nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta."
DEPOIS DE LAUSANNE
Por influência deste, vários outros eventos foram realizados,
buscando aprofundar questões e definir agendas específicas de atuação. Dentre
esses eventos, aconteceu o Congresso Missionário da ABUB em 1976, em Curitiba,
sob o tema Jesus Cristo, senhorio, propósito e missão, de onde saíram
iniciativas missionárias pioneiras, como equipes de fazedores de tendas e
grupos de trabalhos de áreas afins, gerando ministérios efetivos que atuam até
hoje de maneira significativa, servindo a igreja evangélica brasileira, em
1983, em Belo Horizonte, onde havia o compromisso assinado pelos seus dois mil
e poucos participantes, numa clara referência ao congresso de Lausanne.
PARA ALÉM DE
LAUSANNE
Novas gerações podem ser não apenas reproduzidas, mas também
desafiadas a aprofundar seus questionamentos para, à luz da Palavra de Deus,
responder aos desafios de sua época de maneira criativa e obediente ao Senhor.
Desafios da Igreja
Evangélica, segundo Ricardo Wesley:
É preciso recuperar a unidade da igreja na prática de nossa
missão, ultrapassando nossas estreitas fronteiras denominacionais, deixando de
lado interesses particulares e pessoais de projeção e poder, e deixando de
enfatizar tanto nossas diferenças de método ou outras, que às vezes chamamos de
doutrinárias, mas que, na verdade, escondem nossas agendas e ambições.
. Devemos aprofundar nosso conceito de missão integral, passando
do discurso para a vivência, colocando a mão na massa, atuando e intervindo de
maneira ousada e criativa diante das oportunidades e das imensas janelas de
necessidade que se vislumbram em uma realidade tão problemática e carente como
a nossa. Só poderemos falar de um avivamento no Brasil quando percebermos que
questões espinhosas de nosso país, como o tráfico de drogas, a corrupção, o
abuso e exploração de crianças, entre outras, forem radicalmente mudadas a
partir da atuação da igreja de Cristo.
. É preciso assumir riscos desse envolvimento. Se continuarmos
fugindo, não faremos jus à importância da tarefa que o Senhor Jesus deixou para
a sua igreja. . Para evitar os desvios que nos levam para longe de Deus e de
sua vontade, urge resgatar uma prática de leitura e interpretação da Palavra
que é, ao mesmo tempo, apaixonada, comprometida, comunitária e fiel ao seu
ensino todo, que nos conduz a uma devoção mais íntima ao Senhor e que nos leva
inexoravelmente a obediência.
. Devemos resgatar o caráter profético de nossa missão
(denunciando todas as formas do mal e anunciando a justiça de Deus), assim como
recuperar a dimensão de encarnação e serviço mostrada a nós por Jesus, que
apontou ser esse o paradigma que ele deseja quando nos envia ao mundo (Jo 17:18).
. Não permitir que haja um retrocesso em nossa práxis
missionária, voltando a uma falsa dicotomia entre a proclamação pessoal do
evangelho (expressa em um estilo de vida que leva muito a sério a dimensão da
evangelização pessoal) e o resgate e cuidado do ser humano em todas a s suas
necessidades (expresso em um estilo de missão marcado pela compaixão e pelo
engajamento).
Estes são alguns dos desafios para as novas gerações
missionárias.
Resenha do Livro Pacto de Lausanne, Série Lausanne 30 anos -
Editor ABU
PACTO DE LAUSANNE
INTRODUÇÃO
Nós, membros da Igreja de Jesus Cristo, procedentes de mais de
150 nações, participantes do Congresso Internacional de Evangelização Mundial,
em Lausanne, louvamos a Deus por sua grande salvação, e regozijamo-nos com a
comunhão que, por graça dele mesmo, podemos ter com ele e uns com os outros.
Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos dias, movidos
ao arrependimento por nossos fracassos e desafiados pela tarefa inacabada da
evangelização. Acreditamos que o evangelho são as boas novas de Deus para todo
o mundo, e por sua graça, decidimo-nos a obedecer ao mandamento de Cristo de
proclamá-lo a toda a humanidade e fazer discípulos de todas as nações.
Desejamos, portanto, reafirmar a nossa fé e a nossa resolução, e tornar público
o nosso pacto.
1. O Propósito de Deus
Afirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e Senhor
do Mundo, Pai, Filho e Espírito Santo, que governa todas as coisas segundo o
propósito da sua vontade. Ele tem chamado do mundo um povo para si, enviando-o
novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o seu reino,
edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome. Confessamos,
envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa
missão, em razão de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isolado
demasiadamente. Contudo, regozijamo-nos com o fato de que, mesmo transportado
em vasos de barro, o evangelho continua sendo um tesouro precioso. À tarefa de
tornar esse tesouro conhecido, no poder do Espírito Santo, desejamos
dedicar-nos novamente.
2. A Autoridade e o Poder da Bíblia
Afirmamos a inspiração divina, a veracidade e autoridade das
Escrituras tanto do Velho como do Novo Testamento, em sua totalidade, como
única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que ela afirma, e a única
regra infalível de fé e prática. Também afirmamos o poder da Palavra de Deus
para cumprir o seu propósito de salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a
toda a humanidade, pois a revelação de Deus em Cristo e na Escritura é
imutável. Através dela o Espírito Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes
do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade, de maneira
sempre nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja uma porção
cada vez maior da multiforme sabedoria de Deus.
3. A Unicidade e a Universalidade de Cristo
Afirmamos que há um só Salvador e um só evangelho, embora exista
uma ampla variedade de maneiras de se realizar a obra de evangelização.
Reconhecemos que todos os homens têm algum conhecimento de Deus através da
revelação geral de Deus na natureza. Mas negamos que tal conhecimento possa
salvar, pois os homens, por sua injustiça, suprimem a verdade. Também
rejeitamos, como depreciativo de Cristo e do evangelho, todo e qualquer tipo de
sincretismo ou de diálogo cujo pressuposto seja o de que Cristo fala igualmente
através de todas as religiões e ideologias. Jesus Cristo, sendo ele próprio o
único Deus-homem, que se ofereceu a si mesmo como único resgate pelos
pecadores, é o único mediador entre Deus e os homems. Não existe nenhum outro
nome pelo qual importa que sejamos salvos. Todos os homens estão perecendo por
causa do pecado, mas Deus ama todos os homens, desejando que nenhum pereça, mas
que todos se arrependam. Entretanto, os que rejeitam Cristo repudiam o gozo da
salvação e condenam-se à separação eterna de Deus. Proclamar Jesus como "o
Salvador do mundo" não é afirmar que todos os homens, automaticamente, ou
ao final de tudo, serão salvos; e muito menos que todas as religiões ofereçam
salvação em Cristo. Trata-se antes de proclamar o amor de Deus por um mundo de
pecadores e convidar todos os homens a se entregarem a ele como Salvador e
Senhor no sincero compromisso pessoal de arrependimento e fé. Jesus Cristo foi
exaltado sobre todo e qualquer nome. Anelamos pelo dia em que todo joelho se
dobrará diante dele e toda língua o confessará como Senhor.
4. A Natureza da Evangelização
Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu
por nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e
Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a
todos os que se arrependem e crêem. A nossa presença cristã no mundo é
indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo
propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização
propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e histórico como Salvador e
Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a vir a ele pessoalmente e,
assim, se reconciliarem com Deus. Ao fazermos o convite do evangelho, não temos
o direito de esconder o custo do discipulado. Jesus ainda convida todos os que
queiram segui-lo e negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz e identificarem-se com
a sua nova comunidade. Os resultados da evangelização incluem a obediência a
Cristo, o ingresso em sua igreja e um serviço responsável no mundo.
5. A Responsabilidade Social Cristã
Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens.
Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em
toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão.
Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de
raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade
intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes
considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora
a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a
evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever
cristão. Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de
Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus
Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda
forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de
denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem
Cristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas
também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo injusto. A salvação que
alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas
responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.
6. A Igreja e a Evangelização
Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim
como o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo profunda e
sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e penetrar na
sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja a
evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a igreja inteira
leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do
propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir
o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz deve, ela própria, ser marcada
pela Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço para a evangelização quando trai o
evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas
pessoas, ou uma honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em
promoção e finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma
instituição, e não pode ser identificada com qualquer cultura em particular,
nem com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias humanas.
7. Cooperação na Evangelização
Afirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma unidade
visível de pensamento quanto à verdade. A evangelização também nos convoca à
unidade, porque o ser um só corpo reforça o nosso testemunho, assim como a
nossa desunião enfraquece o nosso evangelho de reconciliação. Reconhecemos,
entretanto, que a unidade organizacional pode tomar muitas formas e não ativa
necessariamente a evangelização. Contudo, nós, que partilhamos a mesma fé
bíblica, devemos estar intimamente unidos na comunhão uns com os outros, nas
obras e no testemunho. Confessamos que o nosso testemunho, algumas vezes, tem
sido manchado por pecaminoso individualismo e desnecessária duplicação de
esforço. Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na verdade, na
adoração, na santidade e na missão. Instamos para que se apresse o
desenvolvimento de uma cooperação regional e funcional para maior amplitude da
missão da igreja, para o planejamento estratégico, para o encorajamento mútuo,
e para o compartilhamento de recursos e de experiências.
8. Esforço Conjugado de Igrejas na Evangelização
Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O
papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo rapidamente. Deus
está levantando das igrejas mais jovens um grande e novo recurso para a evangelização
mundial, demonstrando assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a
todo o corpo de Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus, e a
si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para alcançar suas próprias
áreas como para enviar missionários a outras partes do mundo. Deve ser
permanente o processo de reavaliação da nossa responsabilidade e atuação
missionária. Assim, haverá um crescente esforço conjugado pelas igrejas, o que
revelará com maior clareza o caráter universal da igreja de Cristo. Também
agradecemos a Deus pela existência de instituições que laboram na tradução da
Bíblia, na educação teológica, no uso dos meios de comunicação de massa, na
literatura cristã, na evangelização, em missões, no avivamento de igrejas e em
outros campos especializados. Elas também devem empenhar-se em constante
auto-exame que as levem a uma avaliação correta de sua efetividade como parte
da missão da igreja.
9. Urgência da Tarefa Evangelística
Mais de dois bilhões e setecentos milhões de pessoas, ou seja,
mais de dois terços da humanidade, ainda estão por serem evangelizadas.
Causa-nos vergonha ver tanta gente esquecida; continua sendo uma reprimenda
para nós e para toda a igreja. Existe agora, entretanto, em muitas partes do
mundo, uma receptividade sem precedentes ao Senhor Jesus Cristo. Estamos
convencidos de que esta é a ocasião para que as igrejas e as instituições
para-eclesiásticas orem com seriedade pela salvação dos não-alcançados e se
lancem em novos esforços para realizarem a evangelização mundial. A redução de
missionários estrangeiros e de dinheiro num país evangelizado algumas vezes
talvez seja necessária para facilitar o crescimento da igreja nacional em
autonomia, e para liberar recursos para áreas ainda não evangelizadas. Deve
haver um fluxo cada vez mais livre de missionários entre os seis continentes
num espírito de abnegação e prontidão em servir. O alvo deve ser o de conseguir
por todos os meios possíveis e no menor espaço de tempo, que toda pessoa tenha
a oportunidade de ouvir, de compreender e de receber as boas novas. Não podemos
esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos nós estamos chocados com a
pobreza de milhões de pessoas, e conturbados pelas injustiças que a provocam.
Aqueles dentre nós que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação sua
desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais generosamente
tanto para aliviar os necessitados como para a evangelização deles.
10. Evangelização e Cultura
O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial
requer metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o
surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente
relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e provada
pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é
rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua
cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não
pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas
segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de
valores morais absolutos, em todas as culturas. As missões muitas vezes têm
exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por
vezes, têm ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de
às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar
esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem
servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a
cultura; tudo para a glória de Deus.
11. Educação e Liderança
Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o
crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual, divorciando a
evangelização da edificação dos crentes. Também reconhecemos que algumas de
nossas missões têm sido muito remissas em treinar e incentivar líderes
nacionais a assumirem suas justas responsabilidades. Contudo, apoiamos
integralmente os princípios que regem a formação de uma igreja de fato
nacional, e ardentemente desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais
que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de domínio, mas de
serviço. Reconhecemos que há uma grande necessidade de desenvolver a educação
teológica, especialmente para líderes eclesiáticos. Em toda nação e em toda
cultura deve haver um eficiente programa de treinamento para pastores e leigos
em doutrina, em discipulado, em evangelização, em edificação e em serviço. Este
treinamento não deve depender de uma metodologia estereotipada, mas deve se
desenvolver a partir de iniciativas locais criativas, de acordo com os padrões
bíblicos.
12. Conflito Espiritual
Cremos que estamos empenhados num permanente conflito espiritual
com os principados e postestades do mal, que querem destruir a igreja e
frustrar sua tarefa de evangelização mundial. Sabemos da necessidade de nos
revestirmos da armadura de Deus e combater esta batalha com as armas espirituais
da verdade e da oração. Pois percebemos a atividade no nosso inimigo, não
somente nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em falsos
evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus.
Precisamos tanto de vigilância como de discernimento para salvaguardar o
evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos imunes à aceitação do
mundanismo em nossos atos e ações, ou seja, ao perigo de capitularmos ao
secularismo. Por exemplo, embora tendo à nossa disposição pesquisas bem
preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja, tanto no sentido numérico
como espiritual, às vezes não as temos utilizado. Por outro lado, por vezes tem
acontecido que, na ânsia de conseguir resultados para o evangelho, temos comprometido
a nossa mensagem, temos manipulado os nossos ouvintes com técnicas de pressão,
e temos estado excessivamente preocupados com as estatísticas, e até mesmo
utilizando-as de forma desonesta. Tudo isto é mundano. A igreja deve estar no
mundo; o mundo não deve estar na igreja.
13. Liberdade e Perseguição
É dever de toda nação, dever que foi estabelecido por Deus,
assegurar condições de paz, de justiça e de liberdade em que a igreja possa
obedecer a Deus, servir a Cristo Senhor e pregar o evangelho sem quaisquer
interferências. Portanto, oramos pelos líderes das nações e com eles instamos
para que garantam a liberdade de pensamento e de consciência, e a liberdade de
praticar e propagar a religião, de acordo com a vontade de Deus, e com o que
vem expresso na Declaração Universal do Direitos Humanos. Também expressamos
nossa profunda preocupação com todos os que têm sido injustamente encarcerados,
especialmente com nossos irmãos que estão sofrendo por causa do seu testemunho
do Senhor Jesus. Prometemos orar e trabalhar pela libertação deles. Ao mesmo
tempo, recusamo-nos a ser intimidados por sua situação. Com a ajuda de Deus,
nós também procuraremos nos opor a toda injustiça e permanecer fiéis ao
evangelho, seja a que custo for. Nós não nos esquecemos de que Jesus nos
previniu de que a perseguição é inevitável.
14. O Poder do Espírito Santo
Cremos no poder do Espírito Santo. O pai enviou o seu Espírito
para dar testemunho do seu Filho. Sem o testemunho dele o nosso seria em vão.
Convicção de pecado, fé em Cristo, novo nascimento cristão, é tudo obra dele.
De mais a mais, o Espírito Santo é um Espírito missionário, de maneira que a
evangelização deve surgir espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A
igreja que não é missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito. A
evangelização mundial só se tornará realidade quando o Espírito renovar a
igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na santidade, no amor e no poder.
Portanto, instamos com todos os cristãos para que orem pedindo pela visita do
soberano Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em todo o seu
povo, e que todos os seus dons enriqueçam o corpo de Cristo. Só então a igreja
inteira se tornará um instrumento adequado em Suas mãos, para que toda a terra
ouça a Sua voz.
15. O Retorno de Cristo
Cremos que Jesus Cristo voltará pessoal e visivelmente, em poder
e glória, para consumar a salvação e o juízo. Esta promessa de sua vinda é um
estímulo ainda maior à evangelização, pois lembramo-nos de que ele disse que o
evangelho deve ser primeiramente pregado a todas as nações. Acreditamos que o
período que vai desde a ascensão de Cristo até o seu retorno será preenchido
com a missão do povo de Deus, que não pode parar esta obra antes do Fim. Também
nos lembramos da sua advertência de que falsos cristos e falsos profetas
apareceriam como precursores do Anticristo. Portanto, rejeitamos como sendo
apenas um sonho da vaidade humana a idéia de que o homem possa algum dia
construir uma utopia na terra. A nossa confiança cristã é a de que Deus
aperfeiçoará o seu reino, e aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a
nova terra em que a justiça habitará e Deus reinará para sempre. Enquanto isso,
rededicamo-nos ao serviço de Cristo e dos homens em alegre submissão à sua
autoridade sobre a totalidade de nossas vidas.
CONCLUSÃO
Portanto, à luz desta nossa fé e resolução, firmamos um pacto
solene com Deus, bem como uns com os outros, de orar, planejar e trabalhar
juntos pela evangelização de todo o mundo. Instamos com outros para que se
juntem a nós. Que Deus nos ajude por sua graça e para a sua glória a sermos
fiéis a este Pacto! Amém. Aleluia!
[Lausanne, Suíça, 1974]
Os Desafios do Pacto
de Lausanne para a Igreja Hoje
Introdução
Lausanne foi um marco para o movimento evangélico. O ano de
1974 ainda ressoa em nossos ouvidos de forma viva e relevante.
Foi um
marco e o início de uma instigante e evangélica jornada, cujos
pontos de
descanso foram as conferências pós-Lausanne realizadas em
diversos
lugares do mundo, como a de Manila, por exemplo, e como os
Congressos
Latino-americanos de Evangelização (CLADEs) e os Congressos
Brasileiros de Evangelização (CBEs). Este ensaio visa reler o
Pacto de
Lausanne à luz dessa imensa jornada já realizada a partir dele,
ainda que
com um olhar bastante específico, a partir de uma perspectiva
brasileira,
sulista, reformada e acadêmica.
Não vejo necessidade de apresentar, introdutoriamente, um
arrazoado que justifique a relevância do Pacto de Lausanne para
nós hoje
e, conseqüentemente, deste capítulo do livro. Convido você a ler
o texto a
seguir, juntamente com o texto do próprio Pacto, que tornarão
evidentes a
atualidade e relevância da reflexão aqui encetada a pedido dos
organizadores deste livro. Estas reflexões são apresentadas como
um
convite à leitura e reinterpretação do Pacto de Lausanne, e não
como um
guia para tal empreitada. São apenas uma das vozes no amplo
diálogo
que deve existir entre nós sobre a natureza e missão da igreja
enquanto
povo de Deus evangélico no mundo contemporâneo. Uma voz que
convida
a ouvir, mas, principalmente, a repercutir os sons aqui
expressos de forma
silenciosa.
1. Lausanne e a identidade evangélica em um mundo relativista
(arts.
1-3.15)
Uma das importantes realizações do Pacto de Lausanne foi a de
estabelecer alguns dos principais contornos doutrinários da
identidade
evangélica ou, como alguns preferem chamar, evangelical. A meu
ver, são
quatro os artigos em que aspectos doutrinários são abordados, de
forma
segura e bastante abrangente, os quais permitiram que a rica
diversidade
de experiência de vida cristã e de doutrinas eclesiásticas não
se tornasse
um empecilho para a cooperação e a unidade do mundo evangélico.
São
esses os artigos:
1. O Propósito de Deus
Afirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e
Senhor do Mundo, Pai, Filho e Espírito Santo, que governa
todas as coisas segundo o propósito da sua vontade. Ele tem
chamado do mundo um povo para si, enviando-o novamente
ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o
seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória
do seu nome. Confessamos, envergonhados, que muitas
vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa
missão, em razão de nos termos conformado ao mundo ou
nos termos isolado demasiadamente. Contudo, regozijamonos
com o fato de que, mesmo transportado em vasos de
barro, o evangelho continua sendo um tesouro precioso. À
tarefa de tornar esse tesouro conhecido, no poder do Espírito
Santo, desejamos dedicar-nos novamente.
2. A Autoridade e o Poder da Bíblia
Afirmamos a inspiração divina, a veracidade e autoridade das
Escrituras tanto do Velho como do Novo Testamento, em sua
totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em
tudo o que ela afirma, e a única regra infalível de fé e
prática.
Também afirmamos o poder da Palavra de Deus para
cumprir o seu propósito de salvação. A mensagem da Bíblia
destina-se a toda a humanidade, pois a revelação de Deus
em Cristo e na Escritura é imutável. Através dela o Espírito
Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes do povo de
Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade,
de maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim
revela a toda a igreja uma porção cada vez maior da
multiforme sabedoria de Deus.
3. A Unicidade e a Universalidade de Cristo
Afirmamos que há um só Salvador e um só evangelho,
embora exista uma ampla variedade de maneiras de se
realizar a obra de evangelização. Reconhecemos que todos
os homens têm algum conhecimento de Deus através da
revelação geral de Deus na natureza. Mas negamos que tal
conhecimento possa salvar, pois os homens, por sua
injustiça, suprimem a verdade. Também rejeitamos, como
depreciativo de Cristo e do evangelho, todo e qualquer tipo
de sincretismo ou de diálogo cujo pressuposto seja o de que
Cristo fala igualmente através de todas as religiões e
ideologias. Jesus Cristo, sendo ele próprio o único Deushomem,
que se ofereceu a si mesmo como único resgate
pelos pecadores, é o único mediador entre Deus e os
homens. Não existe nenhum outro nome pelo qual importa
que sejamos salvos. Todos os homens estão perecendo por
causa do pecado, mas Deus ama todos os homens,
desejando que nenhum pereça, mas que todos se
arrependam. Entretanto, os que rejeitam Cristo repudiam o
gozo da salvação e condenam-se à separação eterna de
Deus. Proclamar Jesus como "o Salvador do mundo" não é
afirmar que todos os homens, automaticamente, ou ao final
de tudo, serão salvos; e muito menos que todas as religiões
ofereçam salvação em Cristo. Trata-se antes de proclamar o
amor de Deus por um mundo de pecadores e convidar todos
os homens a se entregarem a ele como Salvador e Senhor
no sincero compromisso pessoal de arrependimento e fé.
Jesus Cristo foi exaltado sobre todo e qualquer nome.
Anelamos pelo dia em que todo joelho se dobrará diante dele
e toda língua o confessará como Senhor.
15. O Retorno de Cristo
Cremos que Jesus Cristo voltará pessoal e visivelmente, em
poder e glória, para consumar a salvação e o juízo. Esta
promessa de sua vinda é um estímulo ainda maior à
evangelização, pois lembramo-nos de que ele disse que o
evangelho deve ser primeiramente pregado a todas as
nações. Acreditamos que o período que vai desde a
ascensão de Cristo até o seu retorno será preenchido com a
missão do povo de Deus, que não pode parar esta obra
antes do Fim. Também nos lembramos da sua advertência
de que falsos cristos e falsos profetas apareceriam como
precursores do Anticristo. Portanto, rejeitamos como sendo
apenas um sonho da vaidade humana a idéia de que o
homem possa algum dia construir uma utopia na terra. A
nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o seu
reino, e aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e
a nova terra em que a justiça habitará e Deus reinará para
sempre. Enquanto isso, rededicamo-nos ao serviço de Cristo
e dos homens em alegre submissão à sua autoridade sobre a
totalidade de nossas vidas.
Durante os trinta anos que separam o Congresso de nossos dias,
igrejas, organizações e movimentos denominados evangélicos se
identificaram com estes temas teológicos e se identificaram
entre si
através destes temas. Agora, em que vivemos em um período de
intensa
relativização e de fluidificação das identidades institucionais
e pessoais, o
Pacto de Lausanne continua a ser relevante instrumento para a
definição e
renovação permanente da identidade evangélica.
No mesmo ano da realização do I Congresso Mundial de
Evangelização, importante teólogo mais identificado com o
movimento
ecumênico do que com o evangélico assim se pronunciava: “A vida
cristã
de teólogos, igrejas e seres humanos se defronta hoje mais do
que nunca
com uma dupla crise, a crise da relevância e a crise de
identidade. Essas
duas crises são complementares. Quanto mais a teologia e a
Igreja
procuram tornar-se relevantes para os problemas atuais, tanto
mais são
lançadas na crise de sua própria identidade. Quanto mais elas
buscam
sustentar sua identidade nos dogmas tradicionais, nas noções
morais
corretas, tanto mais irrelevantes e desacreditadas elas se
tornam.”1
O Pacto de Lausanne, a seu modo, enfrentou bem o duplo desafio
da relevância e da identidade – vinculando-as uma à outra. Isto
se percebe
já no primeiro artigo: a identidade evangélica é definida pelo
propósito de
Deus para a sua igreja: “Ele tem chamado do mundo um povo para
si,
enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas,
para
estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para
a glória do
seu nome.” A identidade evangélica não se edifica sobre “dogmas”
mas
sobre um fundamento muito mais sólido, conquanto invisível, que
é o
próprio ser de Deus, que constitui a Igreja para ser o Seu povo
no mundo
por Ele mesmo criado. Uma identidade construída a partir do
propósito
divino para a igreja atrai para si mesma a relevância no mundo
contemporâneo.
Ser evangélico, então, não é uma questão de se aferrar
intransigentemente a este ou aquele grupo de conceitos
doutrinários, mas
uma questão de comprometer-se com o propósito de Deus, a saber:
ser
evangélico é ser servo e testemunha de Deus – ou seja, ser uma
comunhão de pessoas que persegue em comum o alvo de viver à
altura do
Reino e da Glória de Deus, edificando-se a si mesmas como o
Corpo de
Cristo que anuncia a todo o mundo o reino e a glória. A
formulação do
Pacto não define milimetricamente Reino, Glória e Corpo de
Cristo.
Mantêm-nos como metáforas bíblicas vigorosas, que permitem
diferentes
definições e conceituações, ao mesmo tempo em que exigem forte e
decidido engajamento pessoal e comunitário. A identidade evangélica
não
é, assim, uma questão de crenças, mas uma questão de projeto de
vida –
um projeto missionário de vida, centrado não nas instituições
eclesiásticas
ou nas organizações cristãs, mas no próprio Reino de Deus e Sua
glória,
realizado pelo Corpo de Cristo, a verdade igreja, que não se
deixa definir e
1 MOLTMANN, J. The Crucified God, Nova
Iorque, Harper & Row, 1974, p. 7
delimitar pelas estruturas institucionais, mas pela comunhão
missionária
com Deus e dos seus membros uns com os outros.
Para não ficar em um vazio doutrinário, porém, em outros três
artigos o Pacto restringe a interpretação e vivência da
identidade. No artigo
segundo, reafirma o papel central da Escritura, que “em sua
totalidade,
como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que ela
afirma, e
a única regra infalível de fé e prática.” As metáforas abertas
do Reino,
Glória e Corpo de Cristo devem ser constantemente pensadas e
vividas a
partir da interpretação fiel da Escritura, instrumento único de
Deus para a
saúde doutrinária e identitária do Seu povo. No mesmo artigo,
ainda, a
Escritura não é fechada em seu papel de regra de fé, mas,
“também
afirmamos o poder da Palavra de Deus para cumprir o seu
propósito de
salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a toda a humanidade,
pois a
revelação de Deus em Cristo e na Escritura é imutável. Através
dela o
Espírito Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes do povo de
Deus em
toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade, de maneira
sempre
nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja uma
porção
cada vez maior da multiforme sabedoria de Deus” (grifo meu).
Juntamente com a Escritura, a corajosa afirmação da
exclusividade
salvífica e do retorno de Jesus Cristo (arts. 3 e 15) delimitam
a identidade
evangélica. Importantes à época da formulação do Pacto, esses
dois
tópicos teológicos continuam relevantes em nosso tempo de
relativismo
identitário. A afirmação da exclusividade salvífica de Cristo
não fecha as
portas para o diálogo ecumênico nem para o diálogo
inter-religioso, mas
estabelece claros limites para esses diálogos. Ao mesmo tempo,
porém, e
com igual ênfase, entendo que o artigo terceiro deva ser lido
como uma
ousada afirmação de que a salvação não é patrimônio da Igreja!
Fora de
Cristo não há salvação, mas certamente há salvação fora das
igrejas que
se chamam pelo seu nome. A exclusividade salvífica de Cristo
jamais pode
ser confundida com a “exclusividade salvífica da Igreja”. Pelo
contrário, a
exclusividade salvífica de Cristo demanda a inclusividade
salvífica do
Corpo de Cristo, que transcende os limites doutrinários e
institucionais
rígidos que ameaçam deixar de fora do Reino de Deus aquelas
pessoas
que não se enquadram nas normas institucionais eclesiásticas.
Demanda,
também, o discernimento e a fidelidade na interpretação da
Escritura e no
discipulado, de modo que Cristo não seja banalizado e confundido
com
salvadores humanos ou ideológicos.
O artigo quinze, por sua vez, nos lembra de que a identidade
cristã
evangélica é construída na esperança missionária. O tempo da
Igreja –
entre a vida e o retorno de Cristo – é o tempo da missão ao
mundo e no
mundo. Através desta reafirmação da esperança neotestamentária,
o
Pacto nos ajuda a perceber que a fé cristã não é moderna, nem
pósmoderna,
em sua concepção do tempo e sua relação com a identidade
cristã. Conjugando esperança e Reino de Deus, aprendemos que o
ponto
de partida da experiência do tempo e da identidade na fé cristã
é a tensão
escatológica do já / ainda-não (Marcos 1,14-15), é a futuridade
de Deus
que invadiu o presente (passado para nós) da história e o
preencheu de
um novo sentido e de uma nova dinâmica. A identidade cristã não
se
configura, nem a partir do passado, nem a partir do presente –
mas do
futuro que se fez história em Jesus. Não se configura nem a
partir do
tendo-sido, nem do sendo, mas do poder-vir-a-ser que, a partir
do passado
já se faz presente historicamente. Identidade, então, não se
resgata
(fixação no passado), nem se perde (temor do presente), mas se
constrói.
Não será esta uma tradução fiel do princípio de que a Igreja
Reformada
está sempre se reformando?
Como último aspecto deste primeiro tópico, quero enfatizar a
suprema importância do estudo da Palavra de Deus. Em um tempo em
que a Bíblia vem se tornando cada vez mais um ícone sem poder e
força
de verdade nas mãos de pregadores midiáticos e instituições
eclesiásticas
que buscam o poder. Em um tempo em que o estudo da Bíblia ocupa
o
último lugar no ranking das preferências de estudantes
evangélicos de
pós-graduação, o estudo da Bíblia, à luz de Lausanne, é um dos
grandes e
mais prioritários desafios missionários. Mas precisamos estudar
a Bíblia de
forma nova, não fundamentalista, não relativista, nem
doutrinista. Não
podemos fazer da Bíblia um papa de papel, um mero símbolo que se
toma
nas mãos quando é necessário julgar idéias ou comportamentos
inadequados. Precisamos estudar a Bíblia para fazer re-arder em
nossos
corações e mentes a chama do compromisso com a glória do Deus
que
reina sobre toda a criação e faz do corpo de Cristo o seu
instrumento
evangelizador na terra. Uma leitura da Bíblia que nos ajude a
construir, de
forma nova, nossa identidade, sem relativismos.
Essa forma de leitura da Bíblia, sugerida pelo Pacto de Lausanne,
pode ser definida como uma leitura que busca o consenso
missionário. Ler
a Bíblia visa, neste modelo, a construir consensos, ou seja,
acordos
fraternos sobre a vontade de Deus na atualidade, que sejam:
(a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados
pelos
fins – ou, nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é
bom, é
santo;
(b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências,
doutrinas e conceitos que defendemos passam pelo crivo da
Sagrada
Escritura; e
(c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a
verdade
pessoal e institucional atrás das máscaras do poder, do
dinheiro, do
prestígio ou do saber.
Estudar a Bíblia em busca de consensos missionários depende de
uma estratégia em que os sujeitos da leitura não sejam mais os
indivíduos
isolados, os especialistas da técnica, mas sejam todos os
participantes da
comunidade de fé. Depende de uma estratégia em que as diferentes
contribuições de cada pessoa – tenha ela formação teológica ou
não –
possam ser:
(a) criticamente examinadas, ou seja, que a opinião de cada um
seja
demonstrada e provada e não apenas apoiada ou aceita por causa
da
autoridade acadêmica ou política ou espiritual de quem a
formula;
(b) livremente apresentadas, ou seja, que cada membro da
comunidade
da fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão
da fé, da
vida, da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na
Escritura; e
(c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale
apenas por
falar, que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um,
mas que
cada participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia,
seja
responsável em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu
e o
que quer dizer – como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir
a
explanação da Bíblia pelos missionários cristãos, foram examinar
cuidadosamente o valor e a validade da nova forma de ler a
Bíblia que a fé
cristã estava trazendo.
2. Lausanne e a integralidade da missão em um mundo
fundamentalista (arts. 4-5)
Um dos mais calorosos debates da reunião que firmou o Pacto de
Lausanne foi o da relação entre a evangelização e o compromisso
social.
Com muita sabedoria, o conclave então reunido formulou sua
compreensão dessa relação de modo tal que veio a se tornar o
grande
elemento peculiar do evangelicalismo contemporâneo: a
integralidade da
missão da Igreja: todo o Evangelho, em todo o mundo, para o ser
humano
todo. Ou, na formulação do item 21 do Manifesto de Manila:
“Afirmamos
que Deus está chamando toda a igreja para levar o evangelho todo
a todo
o mundo” (veja a íntegra do Manifesto na home-page do Comitê
Lausanne2). A integralidade da missão também foi a nota
dominante nos
CLADEs (I a IV) que têm formado a identidade do evangelicalismo
latinoamericano.
Vale a pena relembrar a formulação do Pacto:
4. A Natureza da Evangelização
Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo
morreu por nossos pecados e ressuscitou segundo as
Escrituras, e de que, como Senhor e Rei, ele agora oferece o
perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a todos os
2 http://www.gospelcom.net/lcwe
que se arrependem e crêem. A nossa presença cristã no
mundo é indispensável à evangelização, e o mesmo se dá
com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com
sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização
propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e
histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir
as pessoas a vir a ele pessoalmente e, assim, se
reconciliarem com Deus. Ao fazermos o convite do
evangelho, não temos o direito de esconder o custo do
discipulado. Jesus ainda convida todos os que queiram
segui-lo e negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz e
identificarem-se com a sua nova comunidade. Os resultados
da evangelização incluem a obediência a Cristo, o ingresso
em sua igreja e um serviço responsável no mundo.
5. A Responsabilidade Social Cristã
Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os
homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela
justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e
pela libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque
a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem
distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo
ou
idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual
deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também
nos arrependemos de nossa negligência e de termos
algumas vezes considerado a evangelização e a atividade
social mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o
homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos
que a evangelização e o envolvimento sócio-político são
ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são
necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus
e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa
obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica
também uma mensagem de juízo sobre toda forma de
alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos
ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que
existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de
novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar mas
também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo
injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos
transformando na totalidade de nossas responsabilidades
pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.
Diante dos desafios das novas formas de fundamentalismo
religioso
– islâmico e cristão – e ideológico – o neo-liberalismo – as
igrejas
evangélicas precisam reafirmar seu compromisso com a
integralidade da
missão. Evangelizar com integridade de conteúdo e servir com
integridade
de compromisso são as únicas saídas viáveis contra os
fundamentalismos
contemporâneos. Só se supera o fundamentalismo com uma vida
correta,
somente a ortopráxis nos livra de uma ortodoxia enferrujada e
enferrujante.
Ou, se quisermos usar um neologismo deselegante, o Pacto de
Lausanne
nos desafia, hoje em dia, a uma ortodoxopraxia. Viver uma
autêntica
identidade evangélica, tanto em termos de crenças quanto em
termos de
compromissos e ação missionária.
Os fundamentalismos religiosos do presente afastam as igrejas do
serviço sacrificial ao mundo, pois dividem a humanidade entre os
nossos e
os adversários. Como evangelizar e servir aos inimigos? Líderes
autodenominados
cristãos têm preferido jogar bombas a enviar evangelistas
aos povos de outras confissões religiosas. Não se supera tal
tipo de
fundamentalismo com meras palavras, mas com um testemunho
missionário integral. O fundamentalismo ideológico neo-liberal,
por sua
vez, afirma que o mundo já chegou ao seu clímax econômico e
político.
Não há esperança para além do modelo neo-liberal de capitalismo,
afirmase.
Entretanto, a miséria e a exclusão, em suas mais variadas e terríveis
formas, continuam a nos envergonhar como cristãos e como seres
humanos. Mais do que nunca, as igrejas cristãs precisam de ser
portavozes
da esperança missionária concretizada na missão integral. Mais
do
que nunca precisamos ser igrejas criativas no exercício da
missão integral,
pois que os efeitos do pecado são mais nefastos do que em
qualquer outra
época da história humana. Mais do que nunca os artigos 4 e 5 do
Pacto de
Lausanne são relevantes. E que comentário melhor a esses artigos
do que
a Declaração do CLADE IV?
NOS COMPROMETEMOS A:
Orar en todo tiempo y estudiar diligentemente la Biblia,
esforzándonos por obedecer todo el consejo de Dios dentro
de nuestra realidad histórica específica.
Promover en las congregaciones oportunidades de formación
integral y apoyar programas de enseñanza bíblica, junto con
la producción y distribución de materiales que den un
tratamiento serio y accesible a las Escrituras, por intermedio
de instituciones de educación teológica, editoriales y otras
iniciativas.
Ser una comunidad encarnada en la sociedad y desde allí
vivir con fidelidad a todas las demandas del evangelio.
Ser iglesias de adoración, servicio, fe, esperanza, justicia y
amor que se conviertan en comunidades alternativas para
nuestra sociedad.
A valorar e incluir a todos los grupos sociales y culturales
excluidos (niños, jóvenes, mujeres, negros, indígenas,
discapacitados, inmigrantes, etc.) como sujetos a quienes
también está dirigido el evangelio del Reino de Dios.
Buscar un liderazgo que vea en el modelo de Jesús-Siervo
su inspiración y práctica.
Participar en la misión de Dios, dando testimonio integral del
evangelio, viviendo una espiritualidad cristiana abarcadora y
teniendo una mayordomía de la creación que ponga lo
material al servicio de lo espiritual y el poder en beneficio de
los demás y para la gloria de Dios, promoviendo la
reconciliación entre razas, clases sociales, sexos,
generaciones y con el medio ambiente.
Vivir la esperanza escatológica del Reino de Dios en la
sufriente América Latina de hoy, participando activamente en
los procesos de la sociedad civil que promuevan y defiendan
la vida y la dignidad humana.
A la búsqueda intensa de la dirección y acción del Espíritu
Santo en la vida de la iglesia, sin olvidarnos del compromiso
de la evangelización transcultural desde la perspectiva de la
misión integral.
Concluimos esta declaración con la afirmación que la Palabra
de Dios nos convoca a ser comunidades proféticas y
solidarias con el dolor y el sufrimiento que denigran la vida y
la dignidad de nuestras naciones, pues entendemos que
parte medular de nuestra misión es lograr la justicia para
todos en el poder del Espíritu Santo.3
3. Lausanne e a integridade cristã em um mundo consumista (arts.
6.
9-10)
A lembrança da integralidade da missão nos convoca,
imediatamente, ao desafio da integridade cristã no mundo
consumista e
corrupto em que vivemos:
6. A Igreja e a Evangelização
3 Para a íntegra do Documento, veja a home-page da Fraternidade
Teológica Latino Americana, setor
Brasil: http://www.ftl.org.br
Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo
assim como o Pai o enviou, e que isso requer uma
penetração de igual modo profunda e sacrificial. Precisamos
deixar os nossos guetos eclesiásticos e penetrar na
sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da
igreja a evangelização é primordial. A evangelização mundial
requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao
mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito
divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu
para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz
deve, ela própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma
pedra de tropeço para a evangelização quando trai o
evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um
amor genuíno pelas pessoas, ou uma honestidade
escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e
finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do
que uma instituição, e não pode ser identificada com
qualquer cultura em particular, nem com qualquer sistema
social ou político, nem com ideologias humanas.
9. Urgência da Tarefa Evangelística
Mais de dois bilhões e setecentos milhões de pessoas, ou
seja, mais de dois terços da humanidade, ainda estão por
serem evangelizadas. Causa-nos vergonha ver tanta gente
esquecida; continua sendo uma reprimenda para nós e para
toda a igreja. Existe agora, entretanto, em muitas partes do
mundo, uma receptividade sem precedentes ao Senhor
Jesus Cristo. Estamos convencidos de que esta é a ocasião
para que as igrejas e as instituições para-eclesiásticas orem
com seriedade pela salvação dos não-alcançados e se
lancem em novos esforços para realizarem a evangelização
mundial. A redução de missionários estrangeiros e de
dinheiro num país evangelizado algumas vezes talvez seja
necessária para facilitar o crescimento da igreja nacional em
autonomia, e para liberar recursos para áreas ainda não
evangelizadas. Deve haver um fluxo cada vez mais livre de
missionários entre os seis continentes num espírito de
abnegação e prontidão em servir. O alvo deve ser o de
conseguir por todos os meios possíveis e no menor espaço
de tempo, que toda pessoa tenha a oportunidade de ouvir, de
compreender e de receber as boas novas. Não podemos
esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos nós estamos
chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e
conturbados pelas injustiças que a provocam. Aqueles dentre
nós que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação
sua desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir
mais generosamente tanto para aliviar os necessitados como
para a evangelização deles.
10. Evangelização e Cultura
O desenvolvimento de estratégias para a evangelização
mundial requer metodologia nova e criativa. Com a bênção
de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas
profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente
relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser
julgada e provada pelas Escrituras. Porque o homem é
criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em
bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua
cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é
demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de
uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o
seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na
aceitação de valores morais absolutos, em todas as culturas.
As missões muitas vezes têm exportado, juntamente com o
evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm
ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura,
em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de,
humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua
autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos
outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer
a cultura; tudo para a glória de Deus.
Hoje em dia, crescer se tornou uma palavra-chave do movimento
evangélico, juntamente com a palavra liderar, gerenciar.
Todavia, vemos
com imensa tristeza que muitas igrejas crescem e gerenciam seu
crescimento de acordo com padrões mundanos, e não de acordo com
padrões realmente evangélicos. Integridade se torna hoje,
possivelmente,
o maior desafio e a mais urgente prioridade do movimento
evangélico. A
integridade é que nos diferenciará de tantos “evangélicos” que
não são
mais do que empresários da religião. Em nosso país, Brasil, o
termo
evangélico já tem se tornado um termo pouco respeitoso, que
nomeia
propagadores de uma religião centrada no dinheiro e lucro, uma
aberrante
forma capitalista neo-liberal de cristianismo. Dos três artigos
acima citados,
destaco as última sentenças, pois que parecem ter sido escritas
hoje
mesmo: “Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar
esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim
de se
tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar
transformar e
enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.”
Integridade integral, se me permitem o pleonasmo. Integridade
ética, espiritual, estratégica, administrativa, intelectual,
emocional,
institucional, teológica. Integridade que nos faça viver um
estilo de vida
não conformado com o mundo capitalista, consumista e corrupto,
mas um
estilo de vida semelhante ao de Jesus Cristo que a si mesmo se
esvaziou
e se entregou pelo bem da criação alienada de Deus. Integridade
que seja
capaz de recolocar em ordem a pirâmide de valores pessoais e
eclesiais,
na qual a glória de Deus seja o ápice, derrotando Mamom e todos
os
narcisismos contemporâneos. Integridade tal que a mensagem do
Evangelho possa novamente ser ouvida em sua plena autenticidade
e em
todo o seu poder salvífico.
Integridade cultural, especialmente diante do uso cada vez maior
da
mídia e de recursos artísticos nas igrejas. Precisamos de
integridade no
uso da televisão e rádio, pois esses meios se prestam muito
facilmente ao
desvirtuamento da mensagem do Evangelho e à promoção da pessoa
que
realiza o programa. Integridade na apresentação musical e
coreográfica,
tanto no tocante às letras das canções, quanto em relação à
qualidade
musical e artística das performances nos cultos ou fora deles. A
arte tem o
poder de comunicar e atingir o âmago da pessoa, por isso, ao
usa-la,
necessitamos de integridade, a fim de não incorrermos no pecado
da
manipulação emocional de nossos e nossas ouvintes. Integridade
que nos
autorize a repetir as palavras do apóstolo: “Porque nós não
estamos, como
tantos outros, mercadejando a palavra de Deus; antes, em Cristo
é que
falamos na presença de Deus, com sinceridade e da parte do
próprio
Deus” (II Co 2,17).
4. Lausanne e a cooperação cristã em um mundo competitivo (arts.
7-
8)
Integralidade e integridade que nos coloquem de volta no bom
caminho da cooperação, do companheirismo, da solidariedade
cristã ao
invés da competição capitalista. Na íntegra, os artigos 7 e 8 do
Pacto
convocam os evangélicos à cooperação solidária:
7. Cooperação na Evangelização
Afirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma
unidade visível de pensamento quanto à verdade. A
evangelização também nos convoca à unidade, porque o ser
um só corpo reforça o nosso testemunho, assim como a
nossa desunião enfraquece o nosso evangelho de
reconciliação. Reconhecemos, entretanto, que a unidade
organizacional pode tomar muitas formas e não ativa
necessariamente a evangelização. Contudo, nós, que
partilhamos a mesma fé bíblica, devemos estar intimamente
unidos na comunhão uns com os outros, nas obras e no
testemunho. Confessamos que o nosso testemunho,
algumas vezes, tem sido manchado por pecaminoso
individualismo e desnecessária duplicação de esforço.
Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda
na verdade, na adoração, na santidade e na missão.
Instamos para que se apresse o desenvolvimento de uma
cooperação regional e funcional para maior amplitude da
missão da igreja, para o planejamento estratégico, para o
encorajamento mútuo, e para o compartilhamento de
recursos e de experiências.
8. Esforço Conjugado de Igrejas na Evangelização
Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era
missionária. O papel dominante das missões ocidentais está
desaparecendo rapidamente. Deus está levantando das
igrejas mais jovens um grande e novo recurso para a
evangelização mundial, demonstrando assim que a
responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo de
Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus,
e a si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para
alcançar suas próprias áreas como para enviar missionários
a outras partes do mundo. Deve ser permanente o processo
de reavaliação da nossa responsabilidade e atuação
missionária. Assim, haverá um crescente esforço conjugado
pelas igrejas, o que revelará com maior clareza o caráter
universal da igreja de Cristo. Também agradecemos a Deus
pela existência de instituições que laboram na tradução da
Bíblia, na educação teológica, no uso dos meios de
comunicação de massa, na literatura cristã, na
evangelização, em missões, no avivamento de igrejas e em
outros campos especializados. Elas também devem
empenhar-se em constante auto-exame que as levem a uma
avaliação correta de sua efetividade como parte da missão
da igreja.
Diante do predomínio quase que absoluto da organização
neoliberal
da economia e das instituições estatais, a competição se tornou
a
estratégia-chave para o crescimento – não só de empresas, mas
das
próprias igrejas, cada vez mais parecidas com empresas, cujo
produto é o
“evangelho” e cujo lucro é a membresia dizimista. O que James
Houston
fala a respeito da espiritualidade pessoal vale também para a
eclesiásticas: “Grande parte de nossa vida hoje, e até mesmo de
nossa fé
religiosa, está distorcida pelo fato de encararmos a vida ora como
um
sistema de pensamento que requer explicação e argumentação, ora
como
uma agenda repleta de atividades organizadas. O resultado é a
criação de
uma personalidade movida pelos valores do mercado, pouco
conhecedora
da ‘amizade-da-alma’ ou da natureza pessoal de Deus”.4
Para superar o espírito competitivo é necessário que vivamos o
espírito cooperativo, da comunhão solidária. E não é este o
Espírito de
Deus? O Espírito Santo que une, que torna solidário, que faz
partilhar?
Não é o fruto do Espírito o amor, a bondade, a benignidade, a
mansidão, o
domínio-próprio? A cooperação cristã não é uma questão de
estratégia,
mas de espiritualidade. É tempo de reafirmar o compromisso:
“Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na
verdade,
na adoração, na santidade e na missão. Instamos para que se
apresse o
desenvolvimento de uma cooperação regional e funcional para
maior
amplitude da missão da igreja, para o planejamento estratégico,
para o
encorajamento mútuo, e para o compartilhamento de recursos e de
experiências.” É tempo de vencermos Mamom e seu profeta, o
mercado, e
nos submetermos ao Espírito da unidade, no vínculo da paz, a fim
de
tornarmos relevante nossa identidade e nosso modo de viver
missionário
na atualidade.
5. Lausanne e a formação teológica integral em uma igreja
dualista
(arts. 11-12.14)
11. Educação e Liderança
Confessamos que às vezes temos nos empenhado em
conseguir o crescimento numérico da igreja em detrimento do
espiritual, divorciando a evangelização da edificação dos
crentes. Também reconhecemos que algumas de nossas
missões têm sido muito remissas em treinar e incentivar
líderes nacionais a assumirem suas justas responsabilidades.
Contudo, apoiamos integralmente os princípios que regem a
formação de uma igreja de fato nacional, e ardentemente
desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais que
manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de
domínio, mas de serviço. Reconhecemos que há uma grande
necessidade de desenvolver a educação teológica,
especialmente para líderes eclesiásticos. Em toda nação e
em toda cultura deve haver um eficiente programa de
treinamento para pastores e leigos em doutrina, em
4 HOUSTON, James. A Fome da Alma. São Paulo: Abba Press, 2000,
p. 303. (grifo meu)
discipulado, em evangelização, em edificação e em serviço.
Este treinamento não deve depender de uma metodologia
estereotipada, mas deve se desenvolver a partir de iniciativas
locais criativas, de acordo com os padrões bíblicos.
12. Conflito Espiritual
Cremos que estamos empenhados num permanente conflito
espiritual com os principados e potestades do mal, que
querem destruir a igreja e frustrar sua tarefa de
evangelização mundial. Sabemos da necessidade de nos
revestirmos da armadura de Deus e combater esta batalha
com as armas espirituais da verdade e da oração. Pois
percebemos a atividade no nosso inimigo, não somente nas
falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em
falsos evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o
homem no lugar de Deus. Precisamos tanto de vigilância
como de discernimento para salvaguardar o evangelho
bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos imunes
à aceitação do mundanismo em nossos atos e ações, ou
seja, ao perigo de capitularmos ao secularismo. Por exemplo,
embora tendo à nossa disposição pesquisas bem
preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja, tanto no
sentido numérico como espiritual, às vezes não as temos
utilizado. Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na
ânsia de conseguir resultados para o evangelho, temos
comprometido a nossa mensagem, temos manipulado os
nossos ouvintes com técnicas de pressão, e temos estado
excessivamente preocupados com as estatísticas, e até
mesmo utilizando-as de forma desonesta. Tudo isto é
mundano. A igreja deve estar no mundo; o mundo não deve
estar na igreja.
14. O Poder do Espírito Santo
Cremos no poder do Espírito Santo. O pai enviou o seu
Espírito para dar testemunho do seu Filho. Sem o
testemunho dele o nosso seria em vão. Convicção de
pecado, fé em Cristo, novo nascimento cristão, é tudo obra
dele. De mais a mais, o Espírito Santo é um Espírito
missionário, de maneira que a evangelização deve surgir
espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A igreja que
não é missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito. A
evangelização mundial só se tornará realidade quando o
Espírito renovar a igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na
santidade, no amor e no poder. Portanto, instamos com todos
os cristãos para que orem pedindo pela visita do soberano
Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em
todo o seu povo, e que todos os seus dons enriqueçam o
corpo de Cristo. Só então a igreja inteira se tornará um
instrumento adequado em Suas mãos, para que toda a terra
ouça a Sua voz.
Já passou, pelo menos no Brasil, a onda do batalhismo
espiritual.
Você certamente se lembrará de um período, não há muito
acontecido, em
que tudo na igreja se resumia à batalha espiritual: crescimento
numérico,
crescimento espiritual, saúde, finanças, etc. Essa onda revelou
que as
igrejas evangélicas brasileiras ainda continuam fortemente
influenciadas
pelo dualismo platônico, dividindo a realidade em dois mundo
antagônicos:
o material e o espiritual. Enquanto o dualismo na sua versão
capitalista
somente reconhece as causas materiais da ação humana e das
transformações na realidade (dualismo materialista), na sua
versão cristã,
tudo tende a ser explicado por intervenção direta de seres
espirituais
(dualismo espiritualista). O dualismo nega a criação divina. Na
sua versão
materialista, nega a própria existência de Deus que,
conseqüentemente,
não poderia ter criado o mundo. Mundo este que, sem Deus,
basta-se a si
mesmo e explica-se por si mesmo.
Na sua versão espiritualista, o dualismo – embora afirme no
papel –
nega na prática a crença no Deus criador, pois nega que o mundo
que
Deus criou e definiu como seu parceiro também funcione como
causa de
efeitos, tanto na ação humana quanto na natureza em geral. Se
você
prestar atenção ao relato da criação em Gênesis capítulo 1, verá
que
diversas vezes Deus convoca a obra criada a participar da sua
ação
criadora – produzindo fruto, vida, em resposta ao agir de Deus.
A palavra
criadora de Deus não só cria o mundo, mas cria um mundo que age
em
parceria (aliança) com Deus. E isto vale até hoje, pois nem
mesmo a
queda humana no pecado foi capaz de anular a ação criadora de
Deus.
Nossa compreensão das causas físicas, biológicas, culturais,
sociais, etc.,
por causa do pecado, não é plena, nem totalmente suficiente para
explicarmos tudo o que acontece. Entretanto, não pode servir de
desculpa
para atribuirmos toda a causalidade a ações imediatas de seres
espirituais
(Deus, anjos, demônios) na realidade criada.
Para superarmos o dualismo, necessitamos de uma renovada e
aprofundada educação cristã e teológica. De fato, precisamos
perceber
que os adjetivos cristã e teológica não devem ser entendidos
como se
referindo a dois tipos distintos de educação, mas a dois alvos
distintos da
mesma educação. A educação cristã tem como alvo a formação de
todo o
povo de Deus para a missão integral. A educação teológica,
propriamente
dita, tem como alvo a formação de lideranças ministeriais para a
capacitação de todo o povo de Deus para a missão integral.
Educação
cristã e educação teológica são dois lados da mesma moeda, e
ambas
exigem hoje em dia uma ampla renovação, a fim de ajudar a igreja
superar
o dualismo.
Em primeiro lugar, é necessário que se reconheça que: (a) o
crescimento espiritual não é promovido por nenhuma instituição
humana,
nem mesmo pela Igreja; é Deus quem dá o crescimento. De fato,
Deus usa
as realidades naturais, as situações históricas e as
instituições humanas
no seu relacionamento conosco, mas é Ele quem dá o crescimento
espiritual. Concordo com a descoberta de Eugene Peterson: “eu
desisti de
esperar que pessoas ou instituições me proporcionassem aquilo
que já
estava bem ali, no meu quintal.”5; (b) a primeira pessoa
responsável pelo
seu próprio crescimento espiritual é o cristão enquanto
discípulo de Jesus
– seja na igreja, seja no Seminário – pois é nele que habita o
Espírito
Santo, que faz frutificar o amor e a espiritualidade na
convivência amorosa
dos santos e santas; (c) igreja local e Seminário são
co-responsáveis,
solidariamente, no desenvolvimento espiritual de discípulos de
Cristo – na
medida em que criam e mantêm um ambiente propício a esse
desenvolvimento; (d) a maturidade espiritual que todos desejamos
não é
um lugar fixo ao qual se chega depois de um certo tempo de
carreira na
vida cristã, é um lugar conflitivo, de permanente confronto da
pessoa – na
comunidade a que pertence, e na que estuda – contra o mundo, o
pecado,
a carne e o Diabo.
Precisamos, também, destacar que é na vida comunitária e
missionária da igreja local que encontramos o ambiente mais
propício para
o crescimento espiritual dos crentes. É na igreja, não nos
Seminários, que
o exercício mútuo dos dons, a adoração comunitária, a ação
missionária, e
a comunhão com Deus e entre os irmãos e irmãs cria o espaço para
que
cada pessoa chegue à maturidade cristã. Cabe às igrejas,
portanto,
selecionar bem as pessoas que envia para a educação teológica
formal.
Não deveriam mandar neófitos na fé, nem pessoas que não tenham
exercido ministérios reconhecidos pela comunidade, nem pessoas
cujo
testemunho não seja digno. Muito menos deveriam enviar pessoas
problemáticas, na esperança de que o seminário as “conserte”. Se
uma
pessoa chega ao seminário com problemas sérios na sua
espiritualidade, o
mais provável é que ela piore, pois Seminários não são hospitais
espirituais, mas centros de preparação ministerial e teológica
nos quais só
deveriam estudar pessoas já no processo de amadurecimento
espiritual.
Não basta, enfim, que a igreja mande o estudante. Precisa
continuar
orando por ele, o acolhendo como irmão (e não como “pastor em
miniatura”), e o reconhecendo como uma pessoa em preparação, por
Deus, para assumir responsabilidades ministeriais maiores.
5 PETERSON, E. H. op. cit., p. 47
A fim de cumprir sua parte, as igrejas locais precisam
redescobrir a
educação cristã! Quanto já se falou sobre a falência das Escolas
Dominicais? Quanto já se tentou ressuscitá-las? Quantas novas
experiências, a partir de novos modelos de igreja (células,
propósitos,
desenvolvimento natural, etc.), já se fizeram para reavivar a
educação
cristã? Para sermos fiéis a Lausanne, precisamos reinventar a
educação
eclesial, saindo dos limites do paradigma escolar, e assumindo
que toda a
educação cristã visa a preparação de discípulos de Cristo para o
exercício
da missão integral, na força do Espírito Santo, dentro da
realidade
conflitiva do campo missionário que é o mundo. Precisamos
redescobrir a
importância do estudo sério e disciplinado da Palavra de Deus,
da teologia
cristã e da realidade em que vivemos, a fim de sermos homens e
mulheres
que vivam missionariamente no mundo. Educação não precisa ser
chata,
mas não pode se confundir com o culto ou com a edificação nas
células e
pequenos grupos. A educação, conjugada com a celebração
litúrgica e
com a edificação nos pequenos grupos, terá a função de ser
instrumento
do Espírito para a renovação de nossas mentes (cf. Rm 12:1-2), e
para o
desenvolvimento de nossa sabedoria e discernimento espirituais
(cf. Cl
1,9-12).6
Faço minhas as palavras de Henri Nouwen, dirigidas a todos os
líderes cristãos da atualidade: “Qual é, então, a disciplina
necessária para
um líder que deseja ser guiado, ‘de mãos estendidas’? Quero
propor aqui
a disciplina da intensa reflexão teológica. Assim como a oração
nos
mantém ligados ao primeiro amor, e a confissão e o perdão tornam
o
nosso ministério mais recíproco, a intensa reflexão teológica
igualmente
nos fará discernir, com senso crítico, para onde estamos sendo
guiados.”7
Contra todo dualismo, precisamos redescobrir que reflexão
teológica é
uma disciplina espiritual a ser praticada por todos os
discípulos de Cristo,
como a oração, a adoração, a confissão, o louvor, a meditação.
Sem
reflexão teológica a batalha espiritual se transforma em
batalhismo
espiritualista, a busca do Espírito se torna em devaneios
extáticos, o
discernimento se torna adivinhação. Separada das demais
disciplinas
espirituais, a reflexão teológica se torna estéril, cheiro de
morte para a
morte, anti-Evangelho, mero secularismo doutrinário.
6. Lausanne e a paz em um mundo belicoso (art. 13)
Onze de setembro. Esta data ainda ecoa em nossas mentes e
corações, como símbolo mais dramático de uma realidade que foi
tantas
6 Remeto às minhas reflexões sobre o papel da liderança pastoral
na educação cristã, publicadas em
BARRO, J. H. (org.) O Pastor Urbano, Londrina: Descoberta, 2003,
p. 232-249.
7 NOUWEN, H. O perfil do líder cristão do século XXI, Belo
Horizonte: Atos, 2002, p. 55
vezes ocultada, disfarçada, adornada pela mídia – a realidade da
violência.
Data esta que também foi usada para ressurgir sentimos
anti-islâmicos
outrora reprimidos nas igrejas cristãs. Terrível combinação:
terrorismo
internacional e perseguição a evangélicos nos países muçulmanos,
e
imediatamente muitos homens e mulheres de Deus passaram a ver
muçulmanos, todos, como inimigos, hereges, perseguidores da
igreja. Um
olhar míope, que nos impediu de enxergar a violência instalada
no próprio
coração do mundo “cristão” ocidental em que vivemos. Violência
econômica, cultural, estrutural. Violência que nos espanta, pois
praticada
contra as esposas, contra filhas e filhos indefesos – até mesmo
em lares
cristãos.
A presença do Reino de Deus não elimina as perseguições e os
conflitos humanos por causa da religião. Todavia, faz de nós,
cristãos,
agentes da paz em meio à violência que é expressão do pecado. O
artigo
treze do Pacto teceu esse vínculo entre justiça e paz, na reação
à
perseguição religiosa:
13. Liberdade e Perseguição
É dever de toda nação, dever que foi estabelecido por Deus,
assegurar condições de paz, de justiça e de liberdade em
que a igreja possa obedecer a Deus, servir a Cristo Senhor e
pregar o evangelho sem quaisquer interferências. Portanto,
oramos pelos líderes das nações e com eles instamos para
que garantam a liberdade de pensamento e de consciência, e
a liberdade de praticar e propagar a religião, de acordo com a
vontade de Deus, e com o que vem expresso na Declaração
Universal do Direitos Humanos. Também expressamos
nossa profunda preocupação com todos os que têm sido
injustamente encarcerados, especialmente com nossos
irmãos que estão sofrendo por causa do seu testemunho do
Senhor Jesus. Prometemos orar e trabalhar pela libertação
deles. Ao mesmo tempo, recusamo-nos a ser intimidados por
sua situação. Com a ajuda de Deus, nós também
procuraremos nos opor a toda injustiça e permanecer fiéis ao
evangelho, seja a que custo for. Nós não nos esquecemos de
que Jesus nos preveniu de que a perseguição é inevitável.
A resposta cristã a qualquer tipo de violência só pode ser a
resposta
da paz com justiça. Diante da violência precisamos agir com
profundo
discernimento das suas causas e de suas mais diversas
manifestações.
Acima de tudo, precisamos agir com amor, mostrando aos nossos
inimigos
o mesmo amor com que Deus nos amou – quando éramos nós Seus
inimigos (cf. Rm 5:8). A única forma de romper com o círculo
vicioso e
infindável da violência é a não-violência. Esta lição foi
ensinada pelo
próprio Deus, que enviou seu Filho para morrer por nós, ao invés
de nos
matar por causa do pecado (Cl 1:18-20). Jesus Cristo é a paz (Ef
2:11-22),
e nele toda a violência deve encontrar o seu fim, e ser
transformada em
amizade, em justa paz. E é preciso começar em casa, na família,
na igreja
local, estendendo-se às relações sociais e às internacionais,
assim como
às relações com a parte não-humana do mundo criado por Deus.
Como cidadãos do Reino de Deus, que é reino de plena paz, somos
agentes da paz, feliz pacificadores em nome de Cristo (Mt 5:9).
No Reino
de Deus, viver a cidadania é viver a liberdade, pois cidadã é a
pessoa que
participa ativa e decisivamente da polis, do seu mundo. Cabe,
portanto,
repensar a concepção de liberdade que anima a cidadania. Liberdade
não
pode ser apenas a liberdade individual de fazer o que se deseja
(liberdade
como dominação), nem a liberdade social da comunidade civil na
democracia e no mercado; “liberdade é a paixão criativa pelo
possível.
Liberdade não é apenas voltada para as coisas como elas são,
como na
dominação. Nem é direcionada apenas à comunidade de pessoas como
elas são, como na solidariedade. Ela se direciona para o futuro,
pois o
futuro é o campo desconhecido das possibilidades, enquanto o
presente e
o passado representam esferas familiares de realidades. ...
Assim como
Martin Luther King, temos visões e sonhos de outra vida, uma
vida curada,
justa e boa.”8
7. Lausanne e novos desafios missionários para a Igreja hoje
Nos parágrafos anteriores repassei todos os artigos do Pacto de
Lausanne, destacando a atualidade e relevância dos mesmos para
nossos
dias – bem como procurei ir além de suas formulações
específicas, para
contextualizá-los. Cabe, agora, ao me aproximar do final deste
ensaio,
destacar alguns desafios missionários da atualidade que não
foram
“previstos” nas discussões que levaram ao Pacto de 1974, nem
foram
abordados por mim na contextualização dos artigos do Pacto.
Abordarei
apenas três dentre os tópicos que deveriam fazer parte das
agendas e
planejamentos de igrejas, organizações e grupos evangélicos que
afirmam
a missão integral e se inspiram, em maior ou menor grau, no
Pacto e no
movimento Lausanne. Não irei me aprofundar na análise de nenhuma
das
questões, apenas indicarei sua presença desafiadora para a
missão da
igreja, sem uma ordem hierarquicamente definida de prioridades.
(a)Tecnologia informática. A informática representa para o mundo
contemporâneo uma revolução cultural e existencial, assim como
8 MOLTMANN, J. God for a secular society. The Public relevance
of theology. Minneapolis:
Fortress Press, 1999, p. 159s.
a invenção da imprensa representou para a modernidade
nascente uma revolução da mesma magnitude. Como estamos
bem em meio à revolução, ainda não conseguimos definir bem
seus contornos, mas vários estudiosos já têm apontado as
grandes ênfases dessa revolução, e merecem ser estudados
(por exemplo, Pierre Lévy). Certamente, no dia-a-dia,
especialmente para aqueles de nós que convivem com gerações
mais jovens, alguns dos efeitos dessa revolução já se fazem
sentir. Basta comparar nossa habilidade com computadores e
videogames com a habilidade de nossos filhos e netos.
Não só nas questões de uso de máquinas e softwares, nos
ambientes industriais, financeiros e empresariais em geral, mas
na própria
convivência humana a revolução informática se faz presente.
Quantas
pessoas têm desenvolvido suas comunidades relacionais
predominantemente em ambientes virtuais? Quanto tempo indivíduos
gastam diante da tela de computadores, trabalhando, estudando,
brincando ou mesmo se relacionando com amigos, namorados,
namoradas, amantes, etc. Em síntese, “atualmente estamos
caminhando
para uma existência híbrida, com a máquina sendo implantada no
homem.”9 Ou, nas palavras de Delfim Soares, prevendo os
resultados mais
amplos dessa revolução: “A tecnicização da comunicação provoca a
supressão do espaço e a redução do tempo ou, pelo ângulo
inverso, sua
ampliação. As distâncias são eliminadas: pela comunicação
eletrônica,
trazemos o mundo inteiro instantaneamente até nós. Basta ter ao
nosso
alcance um terminal do sistema, - um simples aparelho de rádio
ou
televisão ou um microcomputador, - para nos tornarmos cidadãos
do
mundo. Em outras palavras, a macrocomunicação reduz o planeta a
uma
aldeia. A mais clara tendência é a transferência das ações
institucionais
para o sistema de comunicação. Este passa a agir como mecanismo
multinstitucional e transnacional. Transforma-se na principal
agência de
difusão cultural e científica e é instrumentalizado como
principal processo
de manipulação ideológica.”10
Como viver e anunciar o Evangelho a essas gerações híbridas da
humanidade? Como ser igreja em um mundo virtualizado? Como
testemunhar o Reino de Deus no reino dos softwares?
(b)Bioética. De igual proporção é a revolução tecnológica no
ambiente da própria vida vegetal, animal e humana. Trata-se do
conjunto de questões abordado pela bioética – reprodução
assistida, transgenia, clonagem, etc. Se olharmos para os
catálogos de editoras evangélicas brasileiras constataremos que
9 Adauto Novaes, Entrevista à FSP, 27.02.2001 “A filosofia
desmonta o homem-máquina”
10 SOARES, D. “Ciberhumanismo ou cibercracia”, Ciberlegenda, n.
1, 1998, na internet,
www.compuland.com.br/delfim
nossas publicações estão gerações atrasadas no campo da ética
da vida. Nossa produção nem se compara à produção de
editoras católicas e universitárias não confessionais. Por que?
Não é o caso desses temas não serem relevantes, ou de
estarem distantes do nosso dia-a-dia, pois também evangélicos
consomem alimentos transgênicos e usufruem de avanços
tecnológicos aplicados à reprodução humana. Não discutimos as
questões, mas casais evangélicos contam entre os usuários das
tecnologias reprodutivas, agricultores evangélicos plantam
transgênicos, isso sem contar com as mais diversas tecnologias
agro-pecuárias que já fazem parte de nosso cotidiano.
A estes aspectos devemos acrescentar a difusão, pela mídia, de
conhecimentos ou pseudo-conhecimentos ligados a tópicos da
bioética.
Quem controla a divulgação dessas informações? São os interesses
dos
grandes conglomerados farmacêuticos ou de pesquisa? Como
equacionar
a liberdade de imprensa com a responsabilidade ética dos meios
de
comunicação? Este é um desafio missionário urgentíssimo, que
possui
várias dimensões, desde a reflexão científica, passando pela
reflexão
teológica e ética, até a formação cristã para viver em um mundo
em que a
vida é tecnicizada. Se, como se populariza em alguns meios, o
comportamento humano é determinado geneticamente, de que adiante
um
compromisso com Cristo? Se o alcoolismo é uma predisposição
genética,
para que ajudar pessoas a combatê-lo com meios não químicos? E
poderia multiplicar os exemplos e áreas de atuação.
(c) Evangelização da Academia. Se no Pacto de Lausanne se
enfatizava a importância da evangelização das/nas culturas, hoje
em dia precisamos acrescer a urgente necessidade de
evangelização dos ambientes acadêmicos. Somente no Brasil,
por exemplo, a proliferação de Universidades e Centros
Universitários, com a explosão do número de docentes e de
estudantes, é assustadora. Nesses ambientes estão sendo
formados os profissionais e as lideranças da nação. Que valores
essas pessoas levarão em seu dia-a-dia de trabalho e liderança?
Nem de longe as igrejas evangélicas têm conseguido
acompanhar a explosão numérica do mundo acadêmico.
Movimentos como a ABUB estão amplamente incapazes de
atender às demandas crescentes de evangelização,
acompanhamento pastoral e reflexão ética e teológica nos meios
universitários. Como apoiá-los? Como atuar eclesial e
missionariamente junto aos profissionais evangélicos formados
com valores distintos dos valores cristãos? As faculdades de
teologia e os seminários precisam enxergar no mundo
acadêmico uma prioridade missionária, uma demanda para suas
instituições, que lhes force a rever sua própria identidade e
missão.
(d)Poderia acrescentar a evangelização dos/nos meios de
comunicação, dos ambientes artísticos, dos bolsões de exclusão
cada vez mais desumanizados em nossas sociedades
ocidentais, mas é hora de terminar este escrito, bem como a de
reconhecer as limitações individuais par tratar de tantos e tão
candentes desafios e questões da contemporaneidade.
CONCLUSÃO
Trinta anos depois, o Pacto de Lausanne continua sendo um
importante documento para o mundo evangélico. Não pode, é certa,
ser
visto como um ponto de chegada, mas como um ponto de partida
para a
reflexão e a ação missionárias. Não podemos fazer do pacto um
substituto
da Bíblia, ou das confissões de fé, ou da própria teologia. Mas
o pacto de
Lausanne deve continuar a ser lido e relido cuidadosa e
criticamente por
nós evangélicos. Merece ser continuamente reescrito através das
nossas
vidas e das nossas ações pessoas, comunitárias e institucionais.
Em um
ambiente cultural que cada vez mais se esquece do passado e da
sua
própria história, somos convocados a manter viva a memória do
agir de
Deus entre nós, a fim de nos motivarmos a ser cada vez mais
fiéis ao
Deus que reina sobre toda a criação, e que deseja a salvação
integral de
todas as suas criaturas.