quarta-feira, 1 de outubro de 2014

HISTORIA DA IGREJA PROTESTANTE NO BRASIL N.1


  
HISTORIA DA IGREJA PROTESTANTE NO BRASIL


  A FRANÇA ANTÁRTICA E A CONFISSÃO DE FÉ

                    DE GUANABARA.


PORTAL MAKENZIE   Alderi S.  Matos

1. A França Antártica

Após o descobrimento do Brasil, Portugal demorou a interessar-se pela ocupação e a colonização dos novos domínios. Por isso, outras nações européias voltaram os seus olhos para o Brasil, atraídas por suas riquezas naturais. Entre essas nações estava a França. Na primeira metade do século 16, esse país, cujo rei era Francisco I, experimentava conflitos em duas frentes. Externamente havia a antiga rivalidade com o Sacro Império Germânico, governado por Carlos V. No interior do país, surgia um fenômeno novo e inquietante: o protestantismo.

No Brasil, após a experiência mal-sucedida das capitanias hereditárias e as constantes incursões de outras nações, Portugal resolveu tomar providências concretas. Em 1549 chegou o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, que construiu Salvador, na Bahia, a primeira capital da colônia. Todavia, o controle da imensa costa era ainda muito limitado.

Foi então que um aventureiro francês teve a idéia de fundar uma colônia no Brasil, em região já bem conhecida pelos franceses: a baía da Guanabara. Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) era vice-almirante da Bretanha (noroeste da França) e cavaleiro da Ordem de Malta, também conhecida como Ordem de São João de Jerusalém.

São controvertidas as razões que teriam levado Villegaignon a planejar esse empreendimento. Possivelmente ele teve um conjunto de motivações: adquirir fama e riquezas, conquistar novos territórios para o seu país e dar refúgio a pessoas que sofriam intolerância religiosa na França.

Villegaignon aproximou-se do vice-almirante Gaspard de Coligny, um dos principais conselheiros do reino, que nutria fortes simpatias pela Reforma. Com isso, conseguiu o apoio do rei Henrique II (1547-1559), que lhe forneceu dois navios aparelhados e recursos para as despesas de viagem. Depois de reunir um bom número de trabalhadores, recrutando-os inclusive nas prisões de Paris e Rouen, Villegaignon deixou o porto de Havre, na Normandia, em 15 de julho de 1555.

Chegaram ao Rio de Janeiro em 10 de novembro, sendo bem recebidos pelos nativos tupinambás, acostumados à presença de franceses naquela região. Eventualmente o grupo instalou-se na pequena ilha de Serigipe, mais tarde denominada Villegaignon, onde foi construído o Forte Coligny. A colônia recebeu o nome de “França Antártica”.

O líder em pouco tempo granjeou a antipatia dos colonos: impunha-lhes trabalhos pesados e não proporcionava alimentação adequada. Logo surgiu uma conspiração, que foi punida com rigor. Um dos companheiros de Villegaignon nesse período foi o frade franciscano André Thévet, cosmógrafo do rei Henrique II, que mais tarde escreveu duas obras – Singularidades da França Antártica (1558) e Cosmografia universal (1575) –, em que defendeu Villegaignon e fez pesadas críticas aos reformados. Jean de Léry afirma ter escrito suas narrativas em parte para rebater as alegações de Thévet.

Diante das dificuldades surgidas, Villegaignon decidiu escrever à Igreja Reformada de Genebra, solicitando o envio de pastores e outras pessoas que ajudassem a elevar o nível religioso e moral da colônia e evangelizassem os indígenas. Coligny, a quem também foi enviada uma carta, convidou para liderar o novo grupo de colonos um ex-vizinho seu, Filipe de Corguilleray, conhecido como senhor Du Pont, que agora residia em Genebra.

Por sua vez, Calvino e seus colegas escolheram alegremente para acompanhar o grupo os pastores Pierre Richier (50 anos) e Guillaume Chartier (30 anos). Richier era doutor em teologia e ex-frade carmelita. Depois da estadia no Brasil residiu em La Rochelle, onde faleceu em 1580. Chartier, natural da Bretanha, também estudou em Genebra. Mais tarde foi capelão de Jeanne D’Albret, mãe do futuro rei Henrique IV.

Os huguenotes que acompanharam os pastores foram Pierre Bourdon, Matthieu Verneil, Jean du Bourdel, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e o sapateiro Jean de Léry, o notável cronista da viagem. Eram ao todo 14 pessoas.

O grupo deixou Genebra no dia 16 de setembro de 1556. Após visitarem o almirante Coligny em Chatillon-Sur-Loing, seguiram para Paris, onde outros se uniram à comitiva. Alguns acreditam que entre eles estava Jacques Le Balleur. Após passarem por Rouen, chegaram ao porto de Honfleur, na Normandia, embarcando para o Brasil no dia 19 de novembro.

A frota de três navios era comandada por Bois Le Conte, sobrinho de Villegaignon. A bordo iam cerca de 290 pessoas, inclusive algumas mulheres. Como de costume, a viagem foi muito penosa. A certa altura, diante da situação em que se achavam, os reformados recitaram o Salmo 107 (ver os versos 23-30). No dia 7 de março de 1557, os viajantes finalmente entraram no “braço de mar” chamado Guanabara pelos selvagens e Rio de Janeiro pelos portugueses.

O desembarque no forte Coligny deu-se no dia 10 de março, uma quarta-feira. O vice-almirante recebeu o grupo afetuosamente e demonstrou alegria porque vinham estabelecer uma igreja reformada. Logo em seguida, reunidos todos em uma pequena sala no centro da ilha, foi realizado um culto de ação de graças, o primeiro culto protestante ocorrido no Brasil e no Novo Mundo.

O ministro Richier orou invocando a Deus. Em seguida foi cantado em uníssono, segundo o costume de Genebra, o Salmo 5: “Dá ouvidos, Senhor, às minhas palavras” (“Aux paroles que je veux dire, plaise-toi l’aureille prester”). Esse hino constava do Saltério Huguenote, com metrificação de Clemente Marot e melodia de Luís Bourgeois, e até hoje se mantém nos hinários franceses. Bourgeois foi diretor de música da Igreja de Genebra de 1545 a 1557 e um dos grandes mestres da música francesa no século 16. A versão mais conhecida em português (“À minha voz, ó Deus, atende”) tem música de Claude Goudimel (†1572) e metrificação do Rev. Manoel da Silveira Porto Filho.

Em seguida, o pastor Richier pregou um sermão com base no Salmo 27:4: “Uma coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. Após o culto, os huguenotes tiveram a sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca, peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena.

Por ordem de Villegaignon, passaram a realizar-se preces públicas noturnas após o trabalho diário, devendo os pastores pregar diariamente e duas vezes aos domingos. A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de março de 1557. Em todos os cultos entoavam-se salmos, segundo o uso das igrejas reformadas.

Inesperadamente, o vice-almirante, que de início se mostrara muito simpático à igreja reformada, começou a levantar dúvidas sobre pontos doutrinários, em especial a Ceia do Senhor. Achava que a presença de Cristo no sacramento era não somente espiritual, mas física. No início de junho, enviou o pastor Chartier de volta à França para colher opiniões de teólogos, especialmente Calvino, a esse respeito.

Com o passar do tempo, Villegaignon começou a insistir em outros pontos: era necessário adicionar água ao vinho da Ceia, o pão consagrado beneficiava tanta a alma como o corpo, era necessário pôr sal e óleo na água do batismo, um ministro não podia contrair segundas núpcias. Finalmente, declarou ter mudado de opinião sobre Calvino, considerando-o um herege desviado da fé. Restringiu as prédicas a meia hora e passou a assisti-las raramente. Qual a razão dessa mudança? Léry opina que Villegaignon recebera cartas do cardeal de Lorena censurando-o fortemente por ter abandonado a fé católica e ele, temeroso das conseqüências, teria mudado de opinião.

Os reformados passaram a celebrar a Ceia à noite, sem o conhecimento do comandante, que em fins de outubro os expulsou para a terra firme. Eles se instalaram em um lugar denominado Briqueterie (olaria), onde permaneceram dois meses à espera de um navio que os levaria de volta para a pátria. Como já faziam quando estavam na ilha, continuaram a visitar os indígenas, com os quais tinham ótimo relacionamento.

Foram esses contatos que permitiram a Jean de Léry (1534-1611) escrever o relato sobre a vida dos nativos que hoje tanto impressiona os estudiosos. Nesse relato, que abrange mais da metade do seu livro, ele descreve com detalhes todos os aspectos da vida indígena, revelando grande percepção, simpatia e sensibilidade. Entre outras informações interessantes, Léry preservou pela primeira vez algumas canções dos nossos índios. Uma dessas canções tupinambás diz: pirá-uassú a uêh, camurupuí-uassú a uêh (“Peixe grande, estou com fome! Camurupim, estou com fome!”).


                                                   PROTESTANTISMO NO BRASIL: 
                               Primeiras Aberturas Legais 

                      Independência e Primeira Constituição

     Se a transferência da família real para o Brasil, em 1808, tem sua importância para o desenvolvimento do protestantismo no país, o momento da Independência também se torna emblemática para perpetuar este processo protestante.

     Após rápidos 13 anos em que D. João estabelecera a Corte portuguesa no Brasil, os eventos do outro lado do Oceano Pacífico não estavam pacificados. Em 1820 a Revolução Liberal exige o retorno de D. João VI a Portugal que para não perder o domínio do Brasil, então promovido a Reino Unido com Portugal e Algarves (1815), nomeia filho D. Pedro como Príncipe Regente da nação brasileira (1821).

     Como fizera com os cofres portugueses ao vir para o Brasil, D. João VI delapida completamente as finanças brasileiras, levando consigo todas as reservas econômicas, deixando o Príncipe Regente e a nação à míngua. A situação torna-se insustentável na medida em que em Portugal reunidos em “Congresso Soberano” com deputados representantes do Brasil e demais colônias, mas com ampla maioria de portugueses, afim de encontrar um solução conciliar para a nova situação, os discursos inicialmente cordiais começaram a se tornarem cada vez mais contundentes e radicais, por parte dos portugueses. Os representantes brasileiros defendiam a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, criada por D. João VI em 1815, mas os portugueses exigiam, por interesses econômicos e uma dose excessiva de arrogância e descriminação, que o Brasil voltasse a condição de Colônia e que D. Pedro I retornasse imediatamente a Portugal. Dois extratos de discursos parlamentar português revelam o tipo de atmosfera que se respirava naquele momento. O primeiro do parlamentar José Joaquim Ferreira de Moura se referindo à população brasileira afirma que era "... composta de negros, mulatos, crioulos e europeus de diferentes caracteres”, (Tavares, 2005, p. 69, apud GOMES, 2010, p. 91) e o segundo do deputado lusitano Barreto Feio, referindo-se à pessoa de D. Pedro I: “um mancebo ambicioso e alucinado à testa de um punhado de facciosos” (D’ARRIAGA, 1889, p. 32; abud GOMES, 2010, p. 91). A temperatura só faz aumentar até os decibéis do insuportável, restando ao Brasil e a D. Pedro I somente duas alternativas: aceitar as condições impostas pelo Parlamento português ou o caminho árduo da independência.

     Alguns meses após o “Dia do Fico” (09 de janeiro de 1822), após algumas viagens apaziguadoras de D. Pedro I por diversos regiões e cidades do país, ele empreende um nova viagem à São Paulo partindo do Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822, acompanhado de uma diminuta comitiva de cinco pessoas e sem a guarda de honra. Quando da proximidade da cidade mais duas pessoas somaram à comitiva.

     Depois de longa viagem, percorrendo todo o Vale do Paraíba, o Príncipe chega ao bairro da Penha, zona leste da cidade São Paulo, na noite de 24 de agosto. A cidade de São Paulo naquele momento histórico era quase uma aldeia, composta de 28 ruas, dez travessas, sete pátios, seis becos e 1.866 casas, com 6.920 habitantes urbanos e incluindo os habitantes rurais chegava próximo de 20.000 habitantes. Mas apesar de sua singela e ainda de pouca influência econômica, devido ao isolamento geográfico, era provida de uma elite sintonizada com as transformações que ocorriam cada vez mais rápido na Europa e nos Estados Unidos.

     O ritmo de trabalho de D. Pedro I é intenso na cidade, com nomeações e reuniões diárias mantendo-se atento às noticias que podiam chegar do Rio de Janeiro, onde sua esposa Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo e José Bonifácio de Andrada acompanham os desenlaces no Parlamento português. No apogeu de seus 23 anos de idade, montado em um cavalo robusto, porém não imponente, adequado para subir a serra íngreme do mar à São Paulo, do qual retornava após inspecionar as fortalezas em Santos, já no período da tarde de 07 de setembro de 1822, o príncipe D. Pedro I, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, na colina às margens do riacho do Ipiranga (rio vermelho em tupi guarani), recebe correspondência do Rio de Janeiro enviadas por Leopoldina e Bonifácio declarando que a sorte estava lançada, ou ele retornava à Portugal e ficaria refém das cortes (Parlamento) como estava D. João VI, ou proclamava a Independência do Brasil e permaneceria como seu Imperador. Após alguns instantes de reflexão se expressa: “É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!”. E uma vez mais, agora se aproximando de sua guarda real que se posta ao seu lado, mais solenemente D. Pedro declara a independência do Brasil:[1]

Amigos, as cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais. ... Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte; e as nossas cores, verde e amarelo, em substituição às das cortes. [Itálico meu]

     O Brasil agora independente tem enormes desafios pela frente. Sem dinheiro, sem exército, sem esquadra e em meio à crise econômica com a decadência das minas de ouro e diamantes e a queda do preço internacional do açúcar – D. Pedro I tem que buscar apoio uma vez mais junto aos ingleses. Estes não se negam a apoiar o jovem Imperador brasileiro, mas o preço será muito grande, além de juros exorbitantes, a exigência da renovação do acordo de Livre Comércio, que venceria em breve, com todas as vantagens mantidas; sem alternativa D. Pedro aceita a proposta inglesa.

     Outro desafio era produzir a primeira Constituição da nova nação. O Imperador convoca a Constituinte, que ele mesmo posteriormente haveria de dissolver, para elaborar o tão importante documento. A grande discussão é o papel do Imperador, de um lado os monarquistas absolutos e do outro os liberais, republicanos e federalistas, o que leva a um impasse somente resolvido com a dissolução do Parlamento. D. Pedro I vai produzir e promulgar a primeira Constituição brasileira, em 25 de março de 1824, que será uma das mais inovadoras entre todas elaboradas na época, com exceção da americana e a mais duradoura de todas que foram elaboradas no Brasil posteriormente, e que foi substituída somente 1891 pela primeira, das muitas, constituição republicana.
    


     Uma das maiores novidades contida nesta primeira Constituição brasileira era a clausula referente à liberdade de culto. Ainda que em 1808 D. João houvesse incluído uma restrita liberdade religiosa no Tratado de Livre Comércio, é com D. Pedro I que plena liberdade religiosa vai de fato ser estabelecida. Ele teve o cuidado de manter o catolicismo como a religião oficial do novo Império, mas de forma pioneira, desde o descobrimento do Brasil, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas e adeptos de quaisquer outras expressões religiosas poderiam professar livremente sua fé. E mais ainda, assegurava-se constitucionalmente, a plena liberdade de imprensa e de opinião, de modo que ninguém poderia ser preso sem processo formal e sem amplo direito de defesa. Infelizmente, ignorada por quase a totalidade dos brasileiros, o texto original da Constituição de 1824 jaz atualmente no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

     Nenhum grupo religioso soube aproveitar ao máximo este artigo constitucional como os protestantes. Eles não apenas começam a se instalarem no país, como iram aproveitar todos os meios de comunicação da época, preferencialmente os jornais e revistas, para a divulgação de suas mensagens evangélicas de conteúdo protestante.

     O primeiro a fazer uso deste artigo foi o Dr. Rev. Robert Kalley, que estava sendo coagido a cessar suas atividades religiosas, pois havia recebido como membros de sua denominação duas senhoras da alta sociedade. Diante desta situação, o Dr. Kelley resolve fazer uma consulta a três dos mais eminentes juristas do Império: Dr. José Nabuco Tomáz de Araujo, então Ministro da Justiça, Dr. Urbano Sabino Pessoa Mello, magistrado e político e Dr. Caetano Alberto Soares, ex-sacerdote católico romano, magistrado e político, solicitando seus pareceres legais e por escrito, conforme um questionário contendo onze pontos relacionados à questão da tolerância e liberdade religiosa no Brasil. Os pareceres dos juristas foram amplamente favoráveis à causa de Kelley e lhe deram fundamentação legal e constitucional para que continuasse a desenvolver suas atividades religiosas. E Pinto sublinha muito bem a importância deste ponto para a inserção permanente do protestantismo no Brasil, em sua dissertação sobre Kalley e a ampliação da liberdade religiosa:

Os pareceres dos juristas e a resolução governamental foram a jurisprudência necessária para que se tornasse mais efetiva a implantação permanente do protestantismo no Brasil, servindo de referência aos demais grupos que começaram a chegar ao país. [...] Kalley saiu tremendamente fortalecido do episódio, projetando-se nos meios acatólicos e também na elite da sociedade brasileira. Um missionário por conta própria, desvinculado de qualquer denominação, que não representava nenhuma igreja ou sociedade missionária estabelecida no exterior, obteve o parecer importante de que o cidadão tinha o direito de seguir a religião que quisesse, segundo o prescrevia a Constituição de 1824. (2005, p. 111 - Itálico meu).

     Portanto, esta foi a estrada percorrida pelo protestantismo brasileiro desde suas primeiras incursões com as invasões francesa e holandesa, perpassando pela primeira abertura com o Tratado de Livre Comércio, através principalmente dos ingleses e sua Igreja Anglicana e concluído de forma permanente na promulgação da primeira Constituição brasileira, com a inovadora clausula de plena liberdade religiosa, de imprensa e de opinião, tão bem aproveita pelo Rev. Kelly e posteriormente com os presbiterianos com Simonton e as demais denominações evangélicas, que hoje estão plenamente inseridas no contexto social brasileiro.



Com dedicação e determinação alcança um nível elevado no conhecimento da língua hebraica, que juntamente com outros companheiros acadêmicos tornaram possível empreender uma tradução dos textos bíblicos com o objetivo de oferecer pela primeira vez uma Bíblia que poderia ser compreendido pelo povo suíço. Sua maior contribuição neste empreendimento inédito esta na sua tradução dos Salmos, que apesar de estarem pronto em maio de 1529, somente puderam ser publicados após a morte de Zwinglio, em 1532. Uma importante e avaliada opinião pode ser encontrada nas palavras do Professor V. Ryssel a partir do Salmo 23:
“A tradução de Zuinglio do ano 1529 é uma tradução sem erros, a tradução mais literal possível das expressões hebraicas, que nem sempre leva em grande consideração as expressões alemãs. O verbo hebraico dá também, segundo suas condições etimológicas, o mais preciso wieder (de volta) na frase “er bringt meine Seele wieder” (ele traz de volta minha alma), ao contrário de “erfrischt” (refrigera) na tradução de 1531 que traz o sentido segundo a forma alemã. Não é segundo a forma alemã também “in meinem Angesicht” (em minha face) no versículo 5, que na tradução posterior foi melhorado. Por outro lado a frase “auf den Pfad der Gerechtigkeit” (na trilha da justiça) no versículo 3, que se manteve na tradução posterior, não se origina de uma falta de consideração com as expressões alemãs, já que no versículo 2 não se traduz “Wasser der Ruhe” (águas da tranquilidade), mas “ruhige bzw. stille Wasser” (águas tranquilas). Zuínglio no entanto o traduz assim porque ele assume que a expressão (= em caminhos retos) não pertence mais à imagem, mas – como isto acontece frequentemente na poesia hebraica – abandona esta imagem e então deve ser entendida em sentido ético. Deve-se assumir isto também porque em Zuínglio, mais do que em Lutero, encontra-se o esforço de expressar mais claramente possível a imagem do pastor. Por isto ele traduz no versículo 2a: “er ernert (alpet) mich” – na Bíblia de 1531 “er macht mich lüyen” = ele me deixa em paz – e no versículo 2b: “er treibt mich”, cuja expressão também é usada no versículo 3 (e aqui também pela Bíblia de 1531), onde no entanto se encontra na última assim como em Lutero, no versículo 2b, o mais neutro “er führt mich”. Uma tentativa muito bela de interpretar a imagem mais vividamente é apresentada no versículo 4, onde Zuínglio traduz o verbo do antecedente condicional não pelo simples “gehen” (ir) ou “wandern” (caminhar), mas é expressa muito incisivamente pela expressão “sich vergehen” (= sich verlaufen, sich verirren, morrer, se perder). A tradução de 1531 escolheu a melhor palavra para a imagem no versículo 4, “Todesschatten” (sombras da morte), no lugar da menos precisa “Tod” (morte), isto talvez porque também era a primeira vez neste ínterim que esta expressão mais precisa (que hoje também é livremente indicada) se tornou conhecida. O relato literal no versículo 5 “mein Trinkgeschirr ist voll” (meu copo está cheio) seria adaptado para o estilo alemão, na verdade de forma completamente oportuna, substituído por “und füllest mir meinen Becher” (e enche meu cálice). (EGLI, 1900, p. 156-157). 
          

Bíblia de Zurique 1531
Impressa por Christoffel Froschauer
Deste modo, aproximadamente três anos antes da publicação da famosa Bíblia de Wittenberg (1534), a cidade de Zurique já possui uma Bíblia na linguagem vernácula, em um belíssimo trabalho tipográfico ilustrado em parte por Holbein.[4]
            A partir de 1525 ele estabelece um curso de Bíblia livre para o clero e estudantes da escola de latim e o curso acontecia diariamente, exceto as sextas-feiras.[5] Auxiliado por estudante ou um colega desenvolvia seus comentários sobre os textos bíblicos, utilizando como ferramentas o texto hebraico e a septuaginta (versão grega do texto hebraico), o texto grego do Novo Testamento e a tradução latina da Vulgata (versão oficial da Igreja Romana). Desta maneira ele podia comparar os diversos textos e esclarecer os equívocos encontrados nas traduções, justificando sua exegese. Estas aulas públicas de Bíblia receberam oficialmente, em 1535 o nome de “Propheizei [Profecia]”, mas conforme informação de Pollet, “estava provavelmente em uso antes dessa data” (1988). Este termo grego, utilizado por Paulo (I Co. 14.1-3), era utilizado com o sentido de instruir, exortar e encorajar e desta forma, Zwinglio indica que suas exegeses dos textos bíblicos estavam debaixo da direção e influência do Espírito Santo. No período de 1525-1531 ele principia estudos que abrangeram 21 livros do Antigo Testamento, seguindo uma ordem cronológica; nas Sextas-Feiras estudava-se o Novo Testamento: os Evangelhos, as Epístolas Paulinas e a Primeira Epístola de João.
            Ao optar por uma predominância dos livros do Antigo Testamento em seus estudos públicos, bem como em seus tratados teológicos, revelam o propósito que ele perseguia de submetê-los ao crivo dos ensinos neotestamentários. Para Zwinglio o estudo e a compreensão da mensagem veterotestamentário deve ser feita à luz de Cristo e não o inverso; sempre se poderia encontrar no Antigo Testamento o que foi claramente expresso em Cristo. Desta forma, ele sempre foi resistente a discutir o Novo Testamento no Antigo, mas não o impediu de utilizar amplamente os ensinos do Antigo para combater os conceitos formulados pelos anabatistas.
            Os anabatistas entendiam que o batismo deveria ser a resposta consciente e explicita de uma experiência pessoal de conversão, portanto não aceitavam o batismo infantil.[6] A argumentação de Zwinglio tomava como princípio o preceito da circuncisão instituída por Deus em relação aos israelitas; assim como a circuncisão não era a causa da salvação do israelita, mas se constituía em um sinal da Aliança, o batismo infantil cristão também se constituía em um sinal de que o filho(a) do cristão estava inserido(a) na Nova Aliança em que seus pais foram inseridos mediante a profissão de fé em Cristo.  Todavia, para Zwinglio a circuncisão não se constituía em uma confirmação da fé de Abraão, mas um compromisso de conduzir seus filhos a Deus dentro dos termos da Aliança anteriormente estabelecida. Ele assim se expressa: “O nosso batismo tende a mesma coisa que a circuncisão anteriormente, é o sinal da aliança que Deus fez conosco através de seu Filho”. (STEPHENS, 1999, p. 263).[7]
            Os anabatistas entendiam que todo o Antigo Testamento havia perdido seu valor mediante a Nova Aliança estabelecida por meio de Cristo, mas Zwinglio rejeita esta tese, pois segundo ele esta interpretação dos anabatistas acabava por rejeitar a Deus, que se revela em ambos os Testamentos.[8] Para fundamentar o valor do Antigo Testamento ele invoca quatro textos do Novo Testamento: Mt 22.29; João 5.39; Ro.15,4 e 1Cor. 10.11, os quais trazem em comum o apelo ao Antigo Testamento como fundamento da mensagem cristã. Em 1 Coríntios 10.11 esta escrito: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos” (NIV), referindo-se à experiência de Israel no deserto. Segundo ele, conforme seu “Prefácio aos Profetas”, incluindo também o verso 6 de 1 Coríntios 11, todos os acontecimentos registrados no Antigo Testamento se revestem de simbolismos e servem para nosso uso, pois, foram escritos para o nosso benefício. Esta é a convicção que esta subjacente da leitura que Zwinglio faz de todo o Antigo Testamento à luz da revelação de Cristo (STEPHENS, 1999, 107).[9]
            Sua convicção de que a Antiga e a Nova Aliança eram basicamente uma, lhe permitiu usar os textos veterotestamentário em seus debates com os católicos e também com Lutero, a cerca da Última Ceia, onde ele a coloca em paralelo com a Páscoa judaica (Êxodo 12.11). Em seus trabalhos exegéticos, as analogias entre a circuncisão e o batismo, a Páscoa e a Última Ceia emergem com constância, como realça Stephens: “o método comparativo é um elemento constante nos escritos de Zwinglio, tanto nos comentários como em outros textos” (1999, p. 92).
            É importante destacar ainda que Zwinglio estava plenamente convencido de que toda a Bíblia foi escrita para o bem da humanidade. Em sua ênfase do sentido natural da Escritura ele acaba por destacar o sentido moral e espiritual dos textos bíblicos. Para ele o sentido moral do texto é a aplicação natural para o ouvinte, que vai trazer compreensão correta do texto e consolo para a vida dele. Outra vertente de sua exegese estava na sua preocupação filológica, pois entendia a necessidade de pregar o texto bíblico em sua expressão autêntica – por isso gastava tanto tempo em conhecer profundamente a língua hebraica e grega, em quais os textos bíblicos foram escritos.
PROTESTANTISMO EM IMAGENS - Baia da Guanabara e cidade do Rio de Janeiro
     Quando os primeiros missionários começaram a chegar ao Brasil, caminhando para o fim do século XIX, eles tiveram o privilégio de visualizarem e posteriormente desbravarem um país extraordinariamente belo e enigmático.
     Por mais de três séculos desde que os portugueses o colocaram no Mapa Mundial (22 de abril de 1500)[1], o Brasil ficou completamente fechado aos demais países europeus.[2] Portugal manteve até onde pode o imenso país escondido dos olhos cobiçosos dos demais reinos e impérios que os circundava.[3] Forçado a um primeiro movimento de povoamento das novas terras brasilianas, já com a liderança do rei D. João III,[4] lança-se o projeto das Capitanias Hereditárias, das quais vingaram apenas três: Pernambuco, São Vicente e Bahia. Estabelece-se então o Regime Colonial, mas é somente depois das investidas mais contundentes dos franceses (1555 – Rio de Janeiro) e posteriormente dos holandeses (1624 – Bahia e 1630 - Pernambuco) que Portugal resolveu assumir a necessidade de estabelecer cidades e povoar as terras do novo continente.
      Se a intenção inicial de Portugal era “fechar” o Brasil, depois das experiências invasoras de França e Holanda, qualquer estrangeiro passou a ser visto como inimigo da coroa. Até mesmo indivíduos eram observados e acompanhados e qualquer dúvida sobre a conduta deles era suficiente para extradita-los.[5] O Brasil ficou incomunicável com o restante do mundo.
     Esta situação somente será alterada por um acontecimento inesperado, causado pela desvairada empreitada napoleônica de estabelecer na Europa um único Império. Acossado por Napoleão e seu exército implacável, D. João VI e a família real e uma imensa corte de aproximadamente 10 a 15 mil pessoas deixam Portugal em direção do Brasil. Os poucos anos em que a Corte portuguesa permaneceu no país foi suficiente para mudar totalmente a história brasileira. A começar pelo fato de que depois de tantos séculos o Brasil abre-se para o mundo e paulatinamente os estrangeiros vão se achegando e tomando conhecimento da grandeza deste imenso país continental. Entre estes estrangeiros estão os primeiros missionários protestantes que inicialmente vem para sondar as possibilidades da implantação da religião de cunho protestante e posteriormente os primeiros missionários que aqui desembarcam com o propósito de estabelecerem suas denominações evangélicas na “Terra Brasilis”.[6]
     Estes pioneiros missionários protestantes normalmente desembarcavam na Baia da Guanabara (RJ) então principal porto brasileiro e também por ser a cidade carioca sede do Governo e capital do Brasil. Abaixo transcrevo a descrição feita por João Maurício Rugendas, desenhista de primeira grandeza, que vindo ao Brasil acompanhando uma malfadada Expedição Cientifica nos dias do Primeiro Reinado, acabou por viajar por todo o país às suas próprias custas e produzindo mais de 400 desenhos, dos quais ele ao retornar para a Europa seleciona 100 e o faz publicar em edição luxuosa, em 1835, em francês e alemão, na litografia de Engelmann, em Paris.[7] Sua descrição da Baia da Guanabara, juntamente com seus desenhos, nos arremessa àqueles primeiros momentos em que os missionários que aqui chegavam ficavam pasmados e impactados pela beleza e grandeza que se advinham do país que eles desejavam tanto alcançar com sua mensagem evangélica protestante.
     Peguemos uma carona com Rugendas e vamos adentrar a Baia da Guanabara e à cidade do Rio de Janeiro como que pela primeira vez, para sentirmos a mesma sensação que tiveram Daniel P. Kidder (1838)[8], James Cooley Fletcher (1851)[9] e sua família, Dr. Rev. Robert Reid Kalley (1855)[10] e sua esposa Sarah Kalley, o jovem Ashbel Green Simonton[11] e posteriormente sua esposa Helen Murdoch , Alexander Latimer Bleckford[12] e sua esposa Elizabeth W. Simonton, Francis Joseph Christopher Schneider, George Whitehill Chamberlain[13] e posteriormente sua esposa Mary Ann Annesley, e cada um daqueles que desembarcaram aqui naquele momento histórico inigualável quando o Brasil está se abrindo plenamente para a religião evangélica protestante, para nunca mais se fechar. 

A baía do Rio de Janeiro é de forma oval e regular, com inúmeros golfos e promontórios. Seu maior comprimento, de sul a norte, é de cinco léguas e sua maior largura, de oeste a leste, é de quatro.
Entra-se na baía, vindo do oceano, por um canal mais estreito, ou melhor, por uma espécie de vestíbulo não menos irregular, cuja saída para a baía tem mais ou menos uma légua de largura, ao passo que do lado do mar a entrada é de mil braças. É essa embocadura exterior da baía do Rio de Janeiro que a primeira prancha deste caderno representa; foi ela desenhada em pleno mar, a pequena distância da terra.
À esquerda, o olhar se fixa na estranha pirâmide de pedra do Pão de Açúcar, cuja configuração fica gravada na lembrança de todo marinheiro que tenha navegado uma única vez que seja ao longo dessa costa. Ao pé do Pão de Açúcar, distinguem-se, numa faixa de terra avançada, as baterias de São Teodósio que, desse lado, defendem a entrada. Em face vê-se a fortaleza de Santa Cruz; finalmente, entre ambas, a pequena Ilha de Lajes, igualmente fortificada, que divide a embocadura da barra em dois canais dominados inteiramente pelo tiro de seus canhões. No fundo, entre o forte de São Teodósio e a Ilha de Lajes, percebe-se a de Villegagnon, coberta também de obras de defesa,
e mais ao longe a Ilha das Cobras. Quanto à cidade, ela se esconde atrás dessas duas ilhas e do Forte de São Teodósio. Logo depois dessa entrada, a costa se retira e se afasta de ambos os lados para formar duas enseadas profundas. A esquerda, que acompanha a costa ocidental, tem o nome de Botafogo; limita-se, ao norte por uma ponta eriçada de colinas (Morro do Flamengo) para trás da qual a costa toma uma direção bastante reta para o norte, até um outro promontório menor e também cheio de rochedos (Morro de Nossa Senhora da Glória), assim chamado por causa da capela nele construída. Daí por diante a costa se dirige primeiramente para o norte, em seguida faz uma ligeira curva para leste, formando, na Ponta do Calabouço, um ângulo agudo; por trás desta ponta segue, durante um pequeno espaço, a direção de noroeste, até formar um ângulo obtuso no (Morro de São Bento). Aqui começa a baía propriamente dita, retirando-se a costa para este.
A costa oriental forma, logo depois da entrada, representada na nossa primeira prancha, uma enseada profunda e irregular chamada Saco; há em seguida, uma faixa de terra rochosa e duas pontas. A do sul, chamada Ponta de Nossa Senhora da Boa Viagem, tem uma capela; a do norte apelida-se Ponta da Gravata. Este promontório, juntamente com a Ponta do Calabouço, situada bem de frente, forma a entrada da barra interior, que logo vemos alargar-se de ambos os lados. A costa da baía é montanhosa, tal qual a deste canal ou vestíbulo anterior, e não raro os rochedos se estendem até o mar.
Todavia as montanhas da costa oriental são, em geral, menos altas e de formas menos espantosas e pitorescas que as da costa ocidental, onde sobressai principalmente a enorme massa de rochedo do Corcovado. Inúmeros rios desembocam na baía e formam baixios arenosos e pantanosos e, ao longe, erguem-se as pontas buriladas da Serra dos Órgãos e da Serra da Estrela. Há na baía muitas ilhas, em sua maioria rochosas e pouco extensas. A maior está próxima da costa ocidental: chama-se Ilha do Governador. Fortificaram-se algumas à entrada da baía, destinando-se à defesa da cidade do lado do mar e à proteção dos diversos ancoradouros. Citaremos, entre estas, a Ilha de Laje, na entrada, a de Villegagnon e a das Cobras de que já falamos.
A cidade do Rio de Janeiro, está situada na costa ocidental, precisamente no ângulo que, desse lado, fecha a garganta da baía para o interior. A parte mais antiga da cidade, e também a maior, está construída sobre uma pequena planície irregular, encaixada entre duas filas de colinas rochosas e sem ligação entre si. A fila meridional atinge a Ponta do Calabouço e comporta a Fortaleza de São Sebastião; a fila setentrional termina no Morro de São Bento. É entre esses dois pontos que atracam comumente; aí se acham os cais, o paço do Palácio Imperial e, defronte do Morro de São Bento, a pequena distância a Ilha das Cobras. A oeste, essa parte da cidade é separada por uma grande praça, Campo de Santana, do bairro mais moderno de igual nome. O oeste desse arrabalde alguns riachos, juntamente com um braço de mar ou baixio, formam uma espécie de pântano, Saco do Alferes, o qual separa essa parte da cidade dos bairros mais afastados de Mata-Porcos e Catumbi. Atravessa-se Mata-Porcos numa estrada em forma de dique e passa-se a ponte de São Diogo para chegar ao Castelo Imperial de S. Cristóvão, meia milha adiante.
Talvez não exista no mundo uma região como a do Rio de Janeiro, com paisagens e belezas tão variadas, tanto do ponto de vista da forma grandiosa das montanhas como dos contornos das praias. Em virtude da multidão de enseadas e promontórios, há uma variedade infinita de panoramas, tanto para o lado da cidade como para as montanhas, tanto para o lado da baía e suas ilhas como para o mar alto. Não são menores a riqueza e a variedade da vegetação. Alguns grupos de árvores dessas florestas primitivas, que cobriam outrora as colinas e as encostas das montanhas, permaneceram na vizinhança imediata da cidade. Nos vales mais longínquos e nos flancos menos abruptos dos montes, esses grupos transformam-se em bosques extensos encimados por rochas nuas.  Mais perto da praia, as colinas e os vales enchem-se de plantações de café e chácaras esparsos, cercados de bosques deliciosos e floridos de árvores e arbustos dos trópicos.
Enfim, esboçando melhor o panorama da vegetação desse país, observam-se, cá e lá, alguns grupos de palmeiras esguias e de fetos. Os baixios a oeste da cidade, do lado do Saco do Alferes, inundam-se no momento da maré e na estação das chuvas, e o mangue as invade assim como invade o recôncavo da baía e a embocadura dos rios. Aliás, os terrenos ribeirinhos no Rio de Janeiro são mais ou menos incultos; apenas se encontram algumas plantações esparsas em frente da cidade, entre a Ponta da Gravata e o Armazém. Aí se situam as aldeias Praia Grande, São Domingos e, mais adiante, a Vila de São Lourenço, habitadas pelos descendentes da população primitiva do país. 

A cidade e a baia, vistas do lado da serra. O espectador está colocado perto do grande aqueduto da Carioca, numa das colinas que vão do Corcovado à praia.
fonte www.historiografiaprotestante.blogspot.com 



2. A Confissão de Fé da Guanabara

Frustrados os objetivos da sua missão, os reformados contrataram transporte em um navio vindo de Havre. Partiram no dia 4 de janeiro de 1558, depois que o Jacques foi carregado com pau-brasil, pimentão, algodão, bugios, sagüis, papagaios e outras coisas da terra. Villegaignon havia dado ao mestre do navio cartas dirigidas a várias pessoas, inclusive um processo em que pedia ao primeiro magistrado da França que os huguenotes fossem presos e queimados como hereges.

O navio era velho e tinha pequena capacidade. Somados os marujos e os passageiros, havia 45 pessoas a bordo. Logo, começou a entrar água em muitos pontos do casco. O comandante avisou que a viagem iria ser penosa e não haveria alimento para todos. À vista disso, Léry e alguns companheiros se ofereceram para voltar à terra. O sapateiro desistiu no último momento, quando já se encontrava no bote. Os outros eram Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, André Lafon e Jacques Le Balleur.

Os cinco homens foram parar em uma praia, onde vários indígenas vieram ao seu encontro. Resolveram voltar para o forte Coligny. Villegaignon os recebeu de modo cordial. Doze dias depois, mudou radicalmente de atitude: concluiu que os calvinistas haviam mentido e eram traidores e espiões. Decidiu executá-los por heresia. Como representante do rei Henrique II, podia exigir que eles declarassem publicamente a sua fé. Formulou um questionário sobre questões doutrinárias que já havia levantado anteriormente e deu-lhes doze horas para responderem por escrito.

Tudo de que dispunham os huguenotes era um exemplar das Escrituras. Além disso, não eram teólogos, e sim leigos. Para redigir a resposta escolheram Jean du Bourdel, não só o mais velho deles, mas o mais letrado e conhecedor do latim. Concluída a redação, com tinta de pau-brasil, Bourdel leu-a várias vezes perante os companheiros, interrogando-os sobre cada ponto. Cada um a assinou de próprio punho, indicando que a recebia como sua própria.

A Confissão de Fé da Guanabara ou Confissão Fluminense foi escrita em resposta às perguntas ou quesitos apresentados por Villegaignon. Estritamente, trata-se de um credo, pois quase todos os artigos começam com a palavra “cremos”. Todavia, a sua extensão e a variedade de temas a coloca na categoria das confissões de fé, comuns na época da Reforma. Na verdade, é um dos primeiros documentos confessionais reformados. A Confissão Galicana (1559), a Confissão Belga (1561), o Catecismo de Heidelberg (1566) e a Confissão de Fé de Westminster (1648) são todos posteriores.

A Introdução faz uma bela aplicação do texto de 1 Pedro 3.15. A Confissão de Fé em si é composta de 17 parágrafos de diferentes tamanhos que tratam de cinco ou seis questões principais:

1. Parágrafos 1-4: a doutrina da Trindade, em especial a pessoa de Cristo, com suas naturezas divina e humana.

2. Parágrafos 5-9: a doutrina dos sacramentos; a Ceia é tratada em quatro artigos e o batismo em um.

3. Parágrafo 10: a questão do livre arbítrio.

4. Parágrafos 11-12: a autoridade dos ministros para perdoar pecados e impor as mãos.

5. Parágrafos 13-15: divórcio, casamento dos bispos, voto de castidade.

6. Parágrafos 16-17: a intercessão dos santos e orações pelos mortos.

O texto faz diversas referências aos concílios da igreja antiga e aos pais da igreja, revelando os conhecimentos históricos dos seus autores. Os parágrafos 1 a 4 utilizam uma linguagem tirada do Credo Niceno-Constantinopolitano (ano 381) e da Definição de Calcedônia (ano 451). As expressões “o Filho eternamente gerado do Pai” e “o Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho” (Filioque) são bem conhecidas na história da teologia. O parágrafo 3 se refere ao “símbolo”, ou seja, o Credo dos Apóstolos ou algum dos outros credos antigos. O parágrafo 5 se refere explicitamente ao Concílio de Nicéia (ano 325).

A confissão também menciona quatro pais da igreja ou escritores da igreja antiga: Tertuliano (c.160-c.220) – parágrafo 5; Cipriano (c.200-258) – parágrafos 11 e 15; Ambrósio (c.339-397) – parágrafos 11 e 13; e principalmente Agostinho (354-430) – parágrafos 5 (três vezes), 7, 11 e 17. Há também referências a um grande número de passagens bíblicas, principalmente na segunda metade do documento.

Considerando o documento como um todo, percebem-se três características: (a) é uma confissão de fé bíblica: está repleta de referências e argumentos extraídos diretamente das Escrituras; (b) é uma confissão de fé cristã: expressa convicções e conceitos dos primeiros séculos da igreja; (c) é uma confissão de fé reformada: contém pontos importantes do calvinismo, como a centralidade das Escrituras, a natureza simbólica dos sacramentos, a supremacia de Cristo, a importância da fé, o batismo infantil e a eleição, entre outros.

3. O martírio dos huguenotes

Recebido o texto da confissão, o almirante declarou heréticos vários artigos, especialmente os relativos aos sacramentos e aos votos, e decidiu pela morte dos reformados. No dia 8 de fevereiro, mandou trazer do continente os signatários (Pierre Bourdon ficou na aldeia por se achar enfermo). Lançou-os em uma prisão pequena e escura, onde os condenados oraram e cantaram salmos. Decidiu que fossem estrangulados e lançados ao mar, pois o carrasco não tinha preparo para eliminá-los de outro modo.

Chegou a sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558. O primeiro a ser chamado foi o redator daConfissão de Fé, Jean du Bourdel. Depois de ser agredido e humilhado por Villegaignon, foi conduzido à rocha escolhida para a execução, entoando salmos e louvores no caminho. Orou antes de ser sufocado e lançado às águas. Matthieu Verneil foi o próximo. Perguntou porque estava sendo executado. Diante da resposta, observou que oito meses antes o almirante havia confessado publicamente os mesmos pontos doutrinários pelos quais condenara à morte os reformados. Após orar, pediu a Villegaignon que, em vez de fazê-lo morrer, o tomasse como escravo. O almirante lhe disse que, caso se retratasse, iria pensar no assunto. Verneil se negou a isso e foi executado.

André Lafon deixou-se persuadir por sugestões de auxiliares de Villegaignon, que lhe disseram como poderia salvar a vida. Declarou que não queria ser obstinado em suas idéias calvinistas e se comprometeu a retratar-se quando lhe provassem os seus erros pela Palavra de Deus. Foi poupado e ficou preso na fortaleza, como alfaiate do líder e dos seus homens. Pierre Bourdon foi conduzido pessoalmente por Villegaignon e alguns auxiliares da casa onde se achava gravemente enfermo até a ilha. Disseram-lhe que iria receber tratamento. Teve o mesmo fim que os dois colegas.

Às 10 horas, Villegaignon reuniu toda a sua gente e lhes dirigiu palavras de cautela contra a “seita dos luteranos”. Em sinal de regozijo pelas execuções, mandou fazer farta distribuição de víveres aos seus servos. Ao voltar à França publicou diversos escritos contra a fé reformada, sendo devidamente refutado.

Jacques Le Balleur conseguiu escapar. Alguns acreditam que viera ao Brasil na primeira expedição. Além de eloqüente e teólogo, era versado em espanhol, latim, grego e hebraico. Surgiu na Capitania de São Vicente em 1559, onde chegou em uma canoa de tamoios. Pôs-se a pregar as suas convicções. O jesuíta Luiz de Grã desceu de São Paulo de Piratininga (fundada há cinco anos) para desarraigar a heresia. Balleur ia ganhando terreno e dia a dia aumentava o número dos seus ouvintes. O jesuíta não ousou disputar com ele, mas mandou prendê-lo e o enviou para a Bahia, sede do governo de Mem de Sá, onde ficou encarcerado por oito anos.

Condenado à morte, a execução foi suspensa por algum tempo. Finalmente foi levado ao Rio de Janeiro, para ser executado no lugar onde começara a pregar as suas “heresias”. Foi enforcado na época da expulsão dos últimos franceses, pouco após a fundação da cidade do Rio de Janeiro. No momento da execução, revelando-se inábil o carrasco, foi auxiliado pelo padre José de Anchieta, que julgara haver convertido o calvinista e temia que a demora da execução o fizesse voltar atrás. Esse fato contribuiu para a demora do processo de canonização de Anchieta.

O Jacques e seus passageiros só chegaram à França em fins de maio de 1558, após quase cinco meses de viagem. Algumas pessoas que voltaram para a França quatro meses depois contaram ao senhor Du Pont, em Paris, que haviam testemunhado as execuções. Trouxeram consigo não só a Confissão de Fé, mas todo o processo instaurado contra os calvinistas por Villegaignon, entregando-o a Du Pont, de quem mais tarde o obteve Jean de Léry.

Visando a preservação do documento, Léry o entregou no mesmo ano de 1558 a Jean Crespin, para que o inserisse “no livro dos que em nossos dias foram martirizados na defesa do Evangelho” (História dos Mártires, 1564). Léry diz que alguém, mui justamente, apelidou Villegaignon o “Caim da América”.

Léry regressou a Genebra, onde concluiu os estudos teológicos e foi ordenado. Foi pastor em Belleville-Sur-Saône, perto de Lyon. Voltou para Genebra em 1562 e, a instâncias de amigos, escreveu a sua obra mais famosa, Viagem à terra do Brasil. A seguir exerceu o ministério em Nevers e La Charité. Escapou por milagre do massacre de São Bartolomeu e refugiou-se na fortaleza de Sancerre, vindo a escrever uma narrativa do cerco dessa cidade, publicada em 1574. Perdeu dois manuscritos da sua obra principal (Viagem à terra do Brasil), mas reencontrou o primeiro deles em 1576, publicando-o dois anos depois em La Rochelle.

A 2ª edição, revista e aumentada, veio a lume em Genebra em 1580. Seguiram-se outras quatro até 1600. Foi um dos livros de viagens mais lidos nos séculos 16 a 18. Paul Gaffarel, estudioso francês, publicou uma valiosa edição comentada em 1880. Serviu de base para a tradução para o português, feita por Sérgio Milliet e publicada em 1941.

Em 1907, os delegados do Sínodo da Igreja Presbiteriana do Brasil, reunidos no Rio de Janeiro, fizeram uma visita à Ilha de Villegaignon. Em 1910, quando da organização da Assembléia Geral (Supremo Concílio), fizeram nova visita, comemorando o quarto centenário do nascimento de Calvino, transcorrido no ano anterior. Hoje a Ilha de Villegaignon abriga a Escola Naval, tendo ao lado o aeroporto Santos Dumont.


O PRIMEIRO CULTO PROTESTANTE NO BRASIL


PORTAL MAKENZIE   Alderi S. Matos

Cabe aos presbiterianos a honra de terem realizado o primeiro culto evangélico na história do Brasil e das Américas. Esse evento singular ocorreu há 450 anos em uma pequena colônia fundada pelos franceses na baía de Guanabara.

1. A França Antártica

Após o descobrimento do Brasil, Portugal demorou a interessar-se pela ocupação e a colonização dos novos domínios. Com isso, a colônia atraiu a atenção de outras nações européias, especialmente a França. Após a experiência mal-sucedida das capitanias hereditárias e as constantes incursões estrangeiras, Portugal resolveu tomar providências concretas. Em 1549 enviou o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, que se instalou em Salvador. Todavia, o controle da imensa costa era ainda muito limitado. Foi nesse contexto que o militar e aventureiro Nicolas Durand de Villegaignon teve a idéia de fundar uma colônia numa região bem conhecida dos franceses: a baía de Guanabara.

Villegaignon aproximou-se do vice-almirante Gaspard de Coligny, um dos principais conselheiros do reino, que nutria fortes simpatias pela Reforma. Com isso, conseguiu o apoio do rei Henrique II (1547-1559), que lhe forneceu dois navios aparelhados e recursos para a viagem. A expedição chegou à Guanabara no dia 10 de novembro de 1555, sendo bem recebida pelos índios tupinambás, acostumados à presença de franceses na região. O grupo instalou-se na pequena ilha de Serigipe, mais tarde denominada Villegaignon, onde foi construído o Forte Coligny.

2. A vinda dos reformados

Diante de várias dificuldades surgidas, Villegaignon escreveu à Igreja Reformada de Genebra solicitando o envio de pastores e colonos evangélicos que contribuíssem para a elevação do nível moral e espiritual da colônia. Coligny convidou para liderar o grupo um ex-vizinho seu, Filipe de Corguilleray, conhecido como senhor Du Pont. Por sua vez, João Calvino e seus colegas alegremente escolheram para acompanhar os colonos os pastores Pierre Richier (50 anos) e Guillaume Chartier (30 anos). Os seus objetivos específicos eram implantar a fé reformada entre os franceses e evangelizar os indígenas.

Os huguenotes que os acompanharam foram Pierre Bourdon, Matthieu Verneil, Jean du Bourdel, André Lafon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e o sapateiro Jean de Léry, o cronista da viagem, que escreveria a obra Viagem à Terra do Brasil (publicada em 1578). Eram ao todo 14 pessoas. O grupo deixou Genebra em 16 de setembro de 1556. Após visitarem o almirante Coligny, seguiram para Paris, onde outros se uniram à comitiva. Alguns pensam que entre eles estava Jacques Le Balleur. No dia 19 de novembro embarcaram para o Brasil no porto de Honfleur, na Normandia.

A frota de três navios, comandada por Bois Le Conte, sobrinho de Villegaignon, levava cerca de 290 pessoas, inclusive algumas mulheres. Como de costume, a viagem foi muito penosa. A certa altura, diante da situação em que se achavam, os reformados recitaram o Salmo 107 (ver os vv. 23-30). No dia 7 de março de 1557, os viajantes finalmente entraram no “braço de mar” chamado Guanabara pelos selvagens e Rio de Janeiro pelos portugueses.

3. O primeiro culto

O desembarque no forte Coligny deu-se no dia 10 de março, uma quarta-feira. O vice-almirante recebeu o grupo afetuosamente e demonstrou alegria porque vinham estabelecer uma igreja reformada. Logo em seguida, reunidos todos em uma pequena sala no centro da ilha, foi realizado um culto de ação de graças, o primeiro culto protestante ocorrido nas Américas, o Novo Mundo.

O ministro Richier orou invocando a Deus. Em seguida foi cantado em uníssono, segundo o costume de Genebra, o Salmo 5: “Dá ouvidos, Senhor, às minhas palavras”. Esse hino constava do Saltério Huguenote, com metrificação de Clement Marot e melodia de Louis Bourgeois, e até hoje se mantém nos hinários franceses. Bourgeois foi diretor de música da Igreja de Genebra de 1545 a 1557 e um dos grandes mestres da música francesa no século 16. A versão mais conhecida em português (“À minha voz, ó Deus, atende”) tem música de Claude Goudimel (†1572) e metrificação do Rev. Manoel da Silveira Porto Filho.

Em seguida, o pastor Richier pregou um sermão com base no Salmo 27:4: “Uma coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. Após o culto, os huguenotes tiveram sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca, peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena. A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de março de 1557.

4. Eventos posteriores

Infelizmente, o vice-almirante acabou entrando em conflito com os huguenotes sobre questões doutrinárias e os expulsou da colônia. Em 4 de janeiro de 1558, eles partiram para a França a bordo de um velho navio. O comandante avisou que a viagem iria ser difícil e não haveria alimento para todos. Diante disso, cinco huguenotes se ofereceram para voltar à terra. Inicialmente Villegaignon os recebeu de modo cordial, mas logo os acusou de serem traidores e espiões. Formulou um questionário sobre pontos doutrinários e lhes deu doze horas para responderem por escrito. O resultado foi a belaConfissão de Fé da Guanabara ou Confissão Fluminense.

O almirante declarou heréticos vários artigos e decidiu pela morte dos reformados. No dia 9 de fevereiro de 1558, Jean du Bourdel, Matthieu Verneil e Pierre Bourdon foram estrangulados e lançados ao mar. André Lafon foi poupado devido às suas vacilações religiosas e ao fato de ser o único alfaiate da colônia. Jacques Le Balleur fugiu e foi para São Vicente. Levado preso para a Bahia, ficou encarcerado por oito anos, sendo então conduzido ao Rio de Janeiro, onde foi enforcado. Ele e seus companheiros ficaram conhecidos como os mártires calvinistas do Brasil.

Essa efêmera presença calvinista no início da história do Brasil não produziu efeitos permanentes. Não foi possível aos reformados alcançar seus dois intentos principais: criar uma igreja reformada e evangelizar os nativos. Todavia, esse episódio é considerado um marco significativo na história das missões cristãs, pois foi a primeira vez que os protestantes buscaram anunciar a sua fé a um povo pagão. O fruto mais duradouro do singelo empreendimento foi a bela confissão de fé selada com sangue.

A CONFISSÃO DE FÉ DA GUANABARA (1558)


(Tradução de Erasmo Braga)

Segundo a doutrina de São Pedro Apóstolo em sua primeira epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar a razão da esperança que neles há, e isso com toda a doçura e benignidade. Nós, abaixo assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos concedeu) damos razão a cada ponto, como nos haveis apontado e ordenado, começando no primeiro artigo:

I. Cremos em um só Deus, imortal e invisível, criador do céu e da terra, e de todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é distinto em três pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não dizem respeito senão a uma mesma substância em essência eterna e uma mesma vontade; o Pai, fonte e começo de todo o bem; o Filho, eternamente gerado do Pai, o qual, cumprida a plenitude do tempo, se manifestou em carne ao mundo, sendo concebido do Santo Espírito, nascido da virgem Maria, feito sob a Lei para resgatar os que sob ela estavam, a fim de que recebêssemos a adoção de próprios filhos; o Santo Espírito, procedente do Pai e do Filho, mestre de toda a verdade, falando pela boca dos Profetas, sugerindo todas as coisas que foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos apóstolos. Este é o unico consolador na aflição, dando constância e perseverança em todo o bem.

Cremos que é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a majestade de Deus em fé ou particularmente.

II. Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana, nele inseparáveis.

III. Cremos, quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que a Palavra de Deus, a doutrina apostólica e o Símbolo[1] nos ensinam.

IV. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que nos predisse em São Mateus, vigésimo quinto capítulo, tendo, enquanto homem, todo o poder de julgar, a ele dado pelo Pai. E, quanto ao que dizemos em nossas orações, que o Pai aparecerá enfim na pessoa do Filho, entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao Filho, será manifestado no dito juízo, não, todavia, que queiramos confundir as pessoas, sabendo que elas são realmente distintas uma da outra.

V. Cremos que no Santíssimo Sacramento da Ceia, com as figuras corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato alimentadas com a própria substância de nosso Senhor Jesus, como nossos corpos são alimentados de alimentos, e assim não queremos dizer que o pão e o vinho sejam transformados ou transubstanciados no corpo e sangue dele, porque o pão continua em sua natureza e substância, semelhantemente o vinho, e não há mudança ou alteração.

Distinguimos, todavia, este pão e vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum, sendo que este nos é um sinal sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente recebida.

Ora esta recepção não se faz senão por meio da fé e nela não convém imaginar nada de carnal, como quem prepara os dentes para o comer, como santo Agostinho nos ensina, dizendo: “Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste”.

O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas nosso Senhor Jesus Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz participantes de sua carne, de seu sangue e de todos os seus benefícios.

Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: “Este pão é o meu corpo”.

Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: “Este é o sinal e a figura do meu corpo”.

Santo Agostinho diz: “O Senhor não evitou dizer: Este é o meu corpo, quando dava apenas o sinal de seu corpo”.

Portanto (como é ordenado no primeiro cânon do Concílio de Nicéia), neste santo Sacramento não devemos imaginar nada de carnal e nem nos distrair no pão e no vinho, que nos são neles propostos por sinais, mas levantar nossos espíritos ao Céu para contemplar pela fé o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus, sentado à destra de Deus, seu Pai.

Neste sentido podíamos juntar o artigo da Ascenção, com muitas outras sentenças de Santo Agostinho, que omitimos temendo ser longas.

VI. Cremos que, se fosse necessario pôr água no vinho, os evangelistas e São Paulo não teriam omitido uma coisa de tão grande conseqüência.

E quanto ao que os doutores antigos têm observado (fundamentando-se sobre o sangue misturado com água que saiu do lado de Jesus Cristo), desde que tal observância não tem nenhum fundamento na Palavra de Deus, visto mesmo que isso aconteceu depois da instituição da Santa Ceia, nós não a podemos hoje admitir necessariamente.

VII. Cremos que não há outra consagração que a que se faz pelo ministro, quando se celebra a Ceia, recitando o ministro ao povo, em linguagem conhecida, a instituição desta Ceia literalmente, segundo a forma que nosso Senhor Jesus Cristo nos prescreveu, admoestando o povo da morte e paixão de nosso Senhor. E mesmo, como diz Santo Agostinho, a consagração e a palavra de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que, segue-se que as palavras secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem ser a consagração como aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo deixou aos seus apóstolos, dirigindo suas palavras aos seus discípulos presentes, aos quais ordenou tomar e comer.

VIII. O Santo Sacramento da Ceia não é alimento para o corpo, como o é para as almas (porque nós não imaginamos nada de carnal, como declaramos no artigo quinto), recebendo-o por fé, a qual não é carnal.

IX. Cremos que o batismo é Sacramento de arrependimento, e como uma entrada na Igreja de Deus, para sermos incorporados em Jesus Cristo. Representa-nos a remissão de nossos pecados passados e futuros, a qual é adquirida plenamente só pela morte de nosso Senhor Jesus.

Demais, a mortificação de nossa carne aí nos é representada, e a lavagem, representada pela água lançada sobre a criança, é sinal e selo do sangue de nosso Senhor Jesus, que é a verdadeira purificação de nossas almas. A sua instituição nos é ensinada na Palavra de Deus, a qual os santos apóstolos observaram usando de água em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito.

Quanto aos exorcismos, renúncia a Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos como tradições dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada por nosso Senhor Jesus.

X. Quanto ao livre-arbítrio, cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus, teve liberdade e vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era o livre-arbítrio, estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem.

Por esta causa, diz São Paulo que o homem sensual não entende as coisas que são de Deus. E Oséias clama aos filhos de Israel: “Tua ruína vem de ti, ó Israel”.

Ora isto entendemos do homem que não é regenerado pelo Santo Espírito.

Quanto ao homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida, nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre-arbítrio, e reforma a vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a execução de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus, como amplamente este Santo Apóstolo declara, no sétimo capítulo aos Romanos, dizendo: “O querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo”.

O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana, todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, São João diz que ele não vive pecando, porque a eleição permanece nele.

XI. Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como diz Santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia.

Santo Agostinho neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os pecados são perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor dissera a seus apóstolos: “Recebei o Santo Espírito”; depois acrescentara: “Se perdoardes a algum seus pecados”, etc.

Cipriano diz que o servidor não pode perdoar a ofensa contra o Senhor.

XII. Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence.

No tocante à ordem eclesiástica, cremos no que São Paulo dela escreveu na Primeira Epístola a Timóteo, e em outros lugares.

XIII. A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina em Mateus, capítulo dezenove, verso cinco. E não somente se pode fazer a separação por essa causa, mas ainda, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte não culpada, não podendo se conter, pode casar-se, como Santo Ambrósio diz sobre o capítulo sete da Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado, todavia, deve nisso proceder com madureza de conselho.

XIV. São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não diz que lhe seja lícito tornar-se a casar, mas o santo apóstolo condena a bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos; todavia, nisso deixamos o julgamento aos mais versados nas Santas Escrituras, não se fundando a nossa fé sobre esse ponto.

XV. Não é licito consagrar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É tambem grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua vocação, visto que a Santa Escritura nos ensina que a continência é um dom especial (Mateus quinze e a I Epístola de São Paulo aos Coríntios, sete). Portanto, segue-se que os que se impõem esta necessidade, renunciando ao matrimônio toda a sua vida, não podem ser desculpados de extrema temeridade e confiança excessiva e insolente em si mesmos.

E por este meio tentam a Deus, visto que o dom da continência é em alguns apenas temporal, e o que o teve por algum tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois, os monges, padres e outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade, tentam contra Deus, por isso que não está neles cumprir o que prometem. São Cipriano, no capítulo onze, diz assim: “Se as virgens que se dedicam de boa vontade a Cristo perseverarem em castidade sem defeito, sendo assim fortes e constantes, podem esperar o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não podem perseverar nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas no fogo da lascívia por seus prazeres e delícias”. Quanto à passagem do apóstolo São Paulo, é verdade que as viúvas, tomadas para servir à Igreja, se submetiam a não mais casar, enquanto estivessem sujeitas ao dito cargo, não que por isso se lhes reputasse ou atribuisse alguma santidade, mas porque não podiam bem desempenhar os seus deveres sendo casadas, e, querendo casar, renunciassem à vocação para que Deus as tinha chamado, contudo, que cumprissem as promessas feitas na Igreja, sem violar a promessa feita no batismo, na qual está contido este ponto: “Que cada um deve servir a Deus na vocação em que foi chamado”. As viúvas, pois, não faziam voto de continência, senão que o casamento não convinha ao ofício para que se apresentavam, e não tinham outra consideração que cumpri-lo. Não eram tão constrangidas que não lhes fosse antes permittido casar-se que abrasar-se e cair em alguma infâmia ou desonestidade.

Ademais, para evitar tal inconveniente, o apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe que sejam recebidas para fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos, que é uma idade comumente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só devem ter sido casados uma vez, a fim de que, por essa forma, tenham já uma aprovação de continência.

XVI. Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, Intercessor e Advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a morte.

Quanto aos santos falecidos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do Reino de Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia não nos devemos dirigir a eles como intercessores para obtermos alguma coisa, porque desobedeceríamos o mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas passagens das Santas Escrituras.

XVII. Quanto aos mortos, São Paulo na 1 Epístola aos Tessalonicenses, quarto capítulo, nos proibe entristecer-nos por eles, porque isto convém aos pagãos, que não têm esperança alguma de ressuscitar. O apóstolo não manda e nem ensina orar por eles, o que não teria esquecido, se fosse conveniente. Santo Agostinho, sobre o Salmo quarenta e oito, diz que os espíritos dos mortos recebem conforme o que tiverem feito durante a vida; que, se nada fizeram, estando vivos, nada recebem, estando mortos.

Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé que Deus nos deu, suplicando que lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre jamais. Assim seja.

Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon

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[1] O Símbolo referido é o Credo dos Apóstolos.


PRIMÓRDIOS DO MOVIMENTO REFORMADO NO BRASIL


Alderi Souza de Matos

Os primeiros calvinistas chegaram ao Brasil ainda no começo da sua história. No final de 1555, um grupo de franceses liderados por Nicolas Durand de Villegaignon instalou-se em uma das ilhas da baía de Guanabara. Um ano e meio mais tarde, chegou à “França Antártica” um grupo de colonos e pastores reformados enviados pelo próprio João Calvino, em resposta a um pedido de Villegaignon. No dia 10 de março de 1557 esses evangélicos realizaram o primeiro culto protestante no Brasil e possivelmente no Novo Mundo. Eventualmente, surgiram desavenças teológicas entre Villegaignon e os calvinistas. Cinco deles foram presos e forçados a escrever uma declaração de suas convicções. O resultado foi a bela Confissão de fé da Guanabara. Com base nessa declaração, três dos calvinistas foram executados e um deles foi poupado por ser o único alfaiate da colônia. O quinto autor da confissão de fé, Jacques le Baleur, conseguiu fugir, mas eventualmente foi preso e mais tarde enforcado. Dentre os que conseguiram retornar para a França estava o sapateiro Jean de Léry, que mais tarde tornou-se pastor e escreveu a célebre obra Viagem à terra do Brasil.

A próxima tentativa de introdução do calvinismo no Brasil ocorreu em meados do século 17 através dos holandeses. No contexto da guerra contra a Espanha, a Companhia das Índias Ocidentais ocupou o nordeste brasileiro por vinte e quatro anos (1630-1654). O mais famoso governante do Brasil holandês foi o príncipe João Maurício de Nassau-Siegen (1637-1644). Embora os residentes católicos e judeus tenham gozado de tolerância religiosa, a igreja oficial da colônia foi a Igreja Reformada da Holanda, que realizou uma grande obra pastoral e missionária. Ao longo dos anos foram criadas 22 igrejas e congregações, dois presbitérios (Pernambuco e Paraíba) e até mesmo um sínodo (1642-1646). Além da assistência aos colonos europeus, a igreja reformada fez um grande trabalho missionário junto aos indígenas. Ao lado da pregação e ensino, houve a preparação de um catecismo na língua nativa. Outros projetos incluíam a tradução das Escrituras e a ordenação de pastores indígenas, o que não chegou a efetivar-se. Com a expulsão dos holandeses, as igrejas nativas vieram a extinguir-se e por um século e meio desapareceram os vestígios do calvinismo no Brasil.

O protestantismo em geral e o presbiterianismo em particular só puderam estabelecer-se definitivamente no Brasil após a chegada da família real em 1808. Em 1810, Portugal e a Inglaterra firmaram um Tratado de Comércio e Navegação cujo artigo XII pela primeira vez em nossa história concedeu liberdade religiosa aos imigrantes protestantes. Logo, muitos deles começaram a chegar de diversas regiões da Europa, inclusive reformados franceses, suíços e alemães. Em 1827, por iniciativa do cônsul da Prússia, foi fundada no Rio de Janeiro a Comunidade Protestante Alemã-Francesa, que congregava luteranos e calvinistas.

Durante várias décadas, o calvinismo ficou restrito às comunidades imigrantes, sem atingir os brasileiros. Os poucos pastores reformados ou presbiterianos que por aqui passaram restringiram suas atividades religiosas aos estrangeiros. Tal foi o caso do Rev. James Cooley Fletcher, um pastor presbiteriano norte-americano que teve uma longa e frutífera ligação com o Brasil a partir de 1851. Ele deu assistência religiosa a marinheiros e imigrantes europeus, procurou aproximar o Brasil e os Estados Unidos nas áreas diplomática, comercial e cultural e escreveu o livro O Brasil e os brasileiros, publicado em 1857. Através de seus contatos com políticos e intelectuais brasileiros, Fletcher contribuiu indiretamente para a introdução do protestantismo no Brasil. Foi por sua sugestão que o missionário congregacional inglês Robert Reid Kalley veio para o Brasil em 1855.

Finalmente, o presbiterianismo foi implantado entre os brasileiros graças ao trabalho do Rev. Ashbel Green Simonton (1833-1867), que chegou ao Brasil em 12 de agosto de 1859 e dois anos e meio mais tarde organizou a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro (12-01-1862). Em março de 1865, seu colega e cunhado Alexander Latimer Blackford organizou a segunda comunidade presbiteriana em terras brasileiras, a Igreja Presbiteriana de São Paulo.

REFORMED BEGINNINGS IN BRAZIL


Alderi Souza de Matos

1. The French Huguenots (1557-1558)

Brazil was discovered by Portuguese navigators in the year 1500. For several decades, Portugal did not make any efforts to settle the new territory. In 1555, an adventurer, Nicholas Durand de Villegaignon, established a French colony in the bay of Rio de Janeiro.

Villegaignon wrote to John Calvin and the Reformed Church in Geneva, asking them to send some Protestant colonists. These French colonists, led by two pastors, arrived in Brazil in March 1557. On March 10, they held the first Protestant worship service in the history of Brazil and the Americas. The purpose of the Huguenot settlers was to start a church among the French and to evangelize the natives.

Due to increasing conflicts with the leader of the colony, the Protestant colonists were expelled from the “Antarctic France”. Later, three of them were killed under the accusation of heresy. They became known as the “Calvinist martyrs of Brazil”. Prior to their death, they wrote a beautiful statement of their faith (1558), the first written on American soil. Thus ended the first Calvinist presence in Brazil.

2. The Dutch Reformed (1630-1654)

In the 17th century, the Dutch made a more successful attempt to start a Protestant colony in Brazil. Since its independence, the Netherlands had been at war with Spain, its former master. In 1621, the Dutch had established the West Indies Company in order to promote their interests in the New World.

At that time, Portugal was under Spanish control (1580-1640), the so-called “Iberian Union”. Thus, the Dutch felt free to attack Brazil, which was technically under the control of Spain. In 1624 they took Salvador, the first capital of Brazil, but were expelled the following year.

Then, between 1630 and 1635 the West Indies Company seized a large portion of northeastern Brazil. Two years later, Prince John Maurice of Nassau-Siegen became the ruler of Dutch Brazil (1637-1644). Being a very capable administrator, he built a new city (Recife) and brought scientists and painters to the colony. He was also a humane leader, granting freedom of conscience and worship to the Catholic and Jewish residents.

The Dutch had their own state church – the Reformed Church. During the 24 years of Dutch colonization 22 churches and mission churches were organized in the Northeast. Preaching was done in Dutch, but in Recife English and French were also used for the benefit of Anglicans and Huguenots.

In 1636, the number of churches made possible the organization of a “classis” or presbytery. For some time there were two presbyteries (Pernambuco and Paraíba), which met annually in the Synod of Brazil (1642-1646). During the whole period, the churches were served by more than 50 pastors, known as “predicants”. There were also assistant preachers, elders, deacons, “comforters of the sick”, and school teachers.

The Dutch Reformed Church paid close attention to the indians. The missionary strategy involved preaching, education, social care, preparation of a catechism, and a project of Bible translation. The future ordination of native pastors was also being considered.

Unfortunately, due to the need for labor in the sugarcane plantations the system of black slavery was kept virtually intact. However, the slaves should be given religious instruction, and when ready for membership, should be received in the church. The separation of legally married couples was prohibited and the slaves should not work on Sundays.

In 1644, Maurice of Nassau submitted his resignation to the Company directors. The following year a Portuguese insurrection marked the beginning of the end for the Dutch settlers. In 1654 they left Brazil and went to the West Indies and New Amsterdam (New York).

As the Dutch departed, all institutional vestiges of Reformed Christianity in Brazil disappeared for over 150 years. The indigenous congregations survived for some time, but eventually ceased to exist.

3. The American Presbyterians

The Reformed faith returned to Brazil after its independence in 1822. For a few decades, many Calvinist immigrants came from several countries of Europe (France, Germany, Switzerland). These immigrants did not try to preach their faith to the Brazilians.

Finally, the Presbyterian Church of the United States of America (PCUSA) decided to start a mission work in Brazil. On August 12, 1859 the first missionary, Rev. Ashbel Green Simonton, arrived in Rio de Janeiro. He was the founder of the Presbyterian Church of Brazil.

ROBERT REID KALLEY: PIONEIRO DO PROTESTANTISMO MISSIONÉRIO NA EUROPA E NAS AMÉRICAS


Alderi Souza de Matos

Introdução

Ao escreverem sobre a implantação da fé protestante em países do terceiro mundo, os estudiosos têm feito uma distinção que aponta para duas modalidades desse fenômeno: o “protestantismo de imigração”, representado por imigrantes protestantes normalmente procedentes da Europa central e setentrional, os quais tenderam a restringir as suas práticas religiosas ao seu próprio grupo étnico, e o “protestantismo de missão”, representado por indivíduos e organizações da Europa e dos Estados Unidos que trabalharam naqueles países com a intenção expressa de angariar adeptos e plantar igrejas entre a população nacional. O médico escocês Robert Reid Kalley é um notável pioneiro dessa segunda modalidade, tendo sido o primeiro missionário protestante a atuar com êxito em várias regiões de língua portuguesa dos dois lados do Atlântico, apesar dos formidáveis obstáculos que teve de enfrentar. Personagem controvertido e polêmico, caracterizado por um espírito empreendedor e independente, Kalley exerceu uma influência profunda e duradoura sobre o protestantismo luso-brasileiro, em diferentes aspectos.

Apesar de Kalley ter se tornado uma figura quase lendária na história do protestantismo brasileiro, alguns aspectos da sua vida, obra e peculiaridades são ainda pouco conhecidos. Daí a oportunidade e relevância de reconsiderar esse pioneiro, visto ter transcorrido recentemente o sesquicentenário da sua chegada ao Brasil (2005). O artigo começa por mostrar as circunstâncias que levaram Kalley da sua Escócia natal à pequena Ilha da Madeira, no Oceano Atlântico. Em seguida, observa-se como a tremenda oposição surgida contra o missionário e seus conversos teve um desfecho não antecipado nem pretendido pelos perseguidores: a difusão da fé evangélica em outras terras. São apontados os fatores que trouxeram Kalley ao Brasil, bem como as influências sofridas e as mudanças experimentadas por ele ao longo da sua caleidoscópica história de vida. Conclui-se com uma avaliação das principais contribuições do personagem, bem como de algumas de suas idiossincrasias pessoais e teológicas.[1]

1. De Glasgow à Ilha da Madeira

Robert Kalley nasceu em Mount Florida, um subúrbio de Glasgow, Escócia, no dia 8 de setembro de 1809. Foi batizado aos oito dias de vida na tradicional e antiga Igreja da Escócia (Presbiteriana).[2] Seu pai, um próspero comerciante e dedicado membro da igreja, faleceu um ano mais tarde. Sua mãe voltou a casar-se, mas morreu em 1815, deixando o filho para ser criado pelo padrasto. Este também era membro da igreja e desejou que o jovem seguisse a carreira ministerial. Aos vinte anos, em agosto de 1829, Robert diplomou-se cirurgião e farmacêutico pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de Glasgow, tendo feito os seus estudos práticos no Hospital Real da mesma cidade. Aceitou um emprego de médico de bordo em duas viagens a Bombaim, na Índia, tendo a oportunidade de visitar muitos portos, inclusive Funchal, na Ilha da Madeira. Sentiu em primeira mão a grande necessidade de médicos no Oriente.[3]

Em 1832, Kalley começou a praticar a medicina em Kilmarnock, a cerca de 30 km de Glasgow, onde se destacou pela sua competência e veio a prosperar financeiramente. Desde a juventude havia sido um incrédulo e agnóstico, tendo sido influenciado pelos escritos do deísta Thomas Paine (1737-1809) e outros autores. Todavia, a atitude de uma paciente cristã, que enfrentou grandes sofrimentos com serenidade e fé, bem como as conversas que teve com ela, levaram o jovem médico a reconsiderar as asserções do cristianismo. O estudo da Bíblia, especialmente das profecias relativas aos judeus e à Palestina, levou-o à conversão e a um interesse pela evangelização dos judeus. Outro fato marcante daqueles anos de transição foi a morte de Robert Morrison (1782-1834), missionário de origem escocesa e presbiteriana, ligado à Sociedade Missionária de Londres, que foi o pioneiro protestante na China (Cantão).

Kalley sentiu que a morte de Morrison representava um desafio e um chamado para ele. Ofereceu os seus serviços à Junta de Missões da Igreja da Escócia como médico missionário e evangelista, mas a junta não o aceitou pelo fato de a China não estar incluída entre os seus campos missionários. Buscou então a Sociedade Missionária de Londres[4], que em fins de novembro de 1837 o admitiu como médico missionário para a China. Foi instruído a embarcar para o campo em 1839, devendo fazer, no ínterim, novos estudos médicos, além de estudos teológicos. Fechou o seu consultório médico e matriculou-se na Universidade de Glasgow, obtendo o grau de doutor em medicina em abril de 1838. Todavia, dois meses após a sua nomeação como missionário, ele havia ficado noivo de Margaret Crawford, de Paisley, cuja frágil saúde a desqualificava para o trabalho na China. A nomeação foi suspensa até uma ocasião oportuna.

Embora a China ainda estivesse nos seus planos, a deterioração da saúde da esposa fez com que Kalley planejasse levá-la por uns tempos para a Ilha da Madeira, cujo clima o havia encantado. Chegaram a Funchal no dia 12 de outubro de 1838. Naquela cidade havia uma grande colônia de escoceses ligada à indústria do vinho e mais tarde Kalley foi eleito presbítero da Igreja Presbiteriana Escocesa ali existente. Logo que chegou, sentiu-se desafiado a empregar as suas aptidões e recursos para auxiliar a população pobre e analfabeta da ilha, e anunciar-lhe o evangelho. Resolveu estudar a língua portuguesa e seguiu para Lisboa, onde, em 17 de junho de 1839, depois de ter sido examinado pela Escola Médico-Cirúrgica daquela cidade, foi habilitado para exercer a medicina nos territórios de Portugal. Seguiu então para Londres, para contatos com a Sociedade Missionária, à qual pedira que o ordenasse pastor e o nomeasse como seu agente na Ilha da Madeira. A Sociedade aprovou a sua ordenação, mas não o aceitou como agente por ainda não ter trabalho naquela ilha. Apesar de não ter feito estudos formais de teologia, sendo aparentemente um autodidata nessa área, Kalley foi aprovado nos exames e ordenado no dia 8 de julho de 1839 por seis ministros presbiterianos ligados à Sociedade. Estes agiram em sua capacidade individual, sem representar uma denominação.[5] Em outubro do mesmo ano, ele retornou à Ilha da Madeira.

Em 1840, Kalley abriu um pequeno hospital com doze leitos em Funchal, com farmácia e consultório grátis para os pobres. Quase cinqüenta pessoas o consultavam diariamente. As consultas eram precedidas por um pequeno culto em que ele lia e explicava as Escrituras e fazia uma oração. Seguia a mesma prática quando visitava os pacientes nos seus lares. Ao mesmo tempo, utilizando recursos próprios e de amigos, abriu escolas diurnas para as crianças e noturnas para os adultos em vários pontos da ilha, nas quais as pessoas aprendiam a ler e eram instruídas nas Escrituras. Nessas escolas mais de 2000 pessoas aprenderam a ler, nos seis anos em que elas funcionaram. Nesse período, Kalley compôs os seus primeiros hinos e escreveu os seus primeiros tratados evangélicos para o povo. Milhares de exemplares das Escrituras foram distribuídos. Aos domingos, grandes grupos reuniam-se nas montanhas para ouvir a pregação do Evangelho e cantar os apreciados “hinos calvinistas”.[6]

2. O espectro da perseguição

A princípio, as autoridades elogiaram o Dr. Kalley pelas suas atividades filantrópicas, registrando em ata, em maio de 1841, a sua gratidão ao “bom doutor inglês”. O povo, reconhecendo os seus serviços, chegou a denominá-lo “o santo inglês”. O ano de 1842 foi particularmente frutífero no trabalho educacional e evangelístico. Porém, no final de janeiro do ano seguinte a hostilidade latente do clero deu início a um movimento anti-herético que, com a cooperação das autoridades civis, rapidamente assumiria proporções assustadoras.[7] Vale lembrar que essas reações antiprotestantes resultaram em parte do caráter conservador de uma comunidade isolada, religiosamente homogênea, como a pequena Ilha da Madeira. Por outro lado, a igreja católica européia vivia um de seus períodos mais conturbados, em que o forte sentimento tridentino e ultramontano da Contra-Reforma fora reforçado ainda mais pela Revolução Francesa e suas conseqüências. O papa então reinante, Gregório XVI (1831-1846), caracterizou-se por seu espírito reacionário e intolerante, manifestando-se fortemente contra os valores da modernidade, tais como a democracia, a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e o Estado.[8] Essa atitude não sofreria alteração durante o longo pontificado do seu sucessor, Pio IX (1846-1878).

Na Ilha da Madeira, as autoridades sucessivamente ordenaram o fechamento das escolas evangélicas, proibiram o Dr. Kalley de exercer a medicina e de realizar cultos domésticos e, invocando uma lei inquisitorial de 1603, o prenderam por seis meses sem direito a fiança (julho de 1843 a janeiro de 1844). Ele tinha a permissão de receber três visitantes de cada vez, mas não podiam cantar hinos e ler as Escrituras. Sob a liderança do cônego Carlos Telles de Meneses, houve um grande esforço no sentido de suprimir o movimento evangélico, do qual resultou a prisão de muitos crentes sob acusações de apostasia, heresia e blasfêmia. Uma pobre mãe de sete filhos, Maria Joaquina Alves, ficou presa durante dois anos e meio (janeiro de 1843 a maio de 1845). Foram terminantemente proibidas a posse e a leitura da Bíblia, embora a versão distribuída fosse a do padre Antônio Pereira de Figueiredo. Após a sua libertação, o Dr. Kalley prosseguiu com o seu trabalho de modo mais limitado e cauteloso, concentrando-se na localidade de Santo Antônio da Serra, onde aos domingos chegavam a reunir-se seiscentas pessoas. Teve o apoio incondicional da Igreja Escocesa de Funchal e de um missionário recém-chegado, o Rev. William Hepburn Hewitson.[9] Em 23 de março de 1845, na casa pastoral da Igreja Escocesa, a Ceia do Senhor foi celebrada pela primeira vez em português segundo a liturgia presbiteriana. Pouco depois, em 8 de maio, foi organizada sob a liderança do Rev. Hewitson a primeira igreja presbiteriana portuguesa, com mais de sessenta membros comungantes, sendo eleitos vários presbíteros e diáconos.

Após passar alguns meses na Escócia, onde falou sobre as suas experiências à Assembléia Geral da Igreja da Escócia em agosto de 1845, Kalley e sua esposa retornaram à Ilha da Madeira. Nos meses seguintes se desencadearam novas perseguições com fúria ainda maior. Os evangélicos continuaram sendo presos, espancados, apedrejados e alguns tiveram suas casas queimadas. Ressoavam na imprensa e outros meios clamores de morte contra os protestantes. Uma série de artigos aparecidos no jornal O Imparcial foi publicada sob o título “Revista histórica do proselitismo anticatólico exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Roberto Reid Kalley, médico escocês, desde 1838 até hoje”. Kalley escreveu uma resposta a esse panfleto acusatório contra os evangélicos, resposta essa que foi publicada em Lisboa e circulou ali e na Ilha da Madeira em julho de 1846. Essa controvérsia aberta parece ter sido o estopim da explosão final, no mês seguinte.[10]

No dia 2 de agosto, um bando chefiado pelo cônego Telles atacou a casa de algumas senhoras inglesas onde cerca de quarenta madeirenses, na maior parte mulheres, haviam se reunido para o culto. Vidros e portas foram quebrados, mas a chegada da polícia impediu que fosse causado dano físico às pessoas reunidas. Nos dias seguintes, muitos “calvinistas” no interior da ilha tiveram suas casas atacadas e sofreram toda sorte de indignidades. O Rev. Kalley tornou-se o alvo principal dos perseguidores e multiplicaram-se ferozes ameaças de morte contra ele. Seus apelos ao cônsul britânico e às autoridades locais foram recebidos com frieza. Na manhã do dia 9, um domingo, a Sra. Kalley foi levada sob disfarce para a residência do cônsul, que havia ido para a sua casa de campo. Disfarçado como uma mulher enferma, o Dr. Kalley foi conduzido em uma rede para uma chácara e dali, antes do raiar do dia 9, foi levado para o navio inglês “Forth”, ancorado na baía de Funchal. Sua casa, móveis, equipamento médico, biblioteca e manuscritos foram todos destruídos em um incêndio, cuja fumaça ele pôde ver do navio. O hospital foi saqueado e muitas das escolas do interior foram queimadas, bem como todas as Bíblias e literatura evangélica que foram encontradas.

Naquela mesma noite, o navio partiu para Trinidad, nas Antilhas (Caribe), onde o Dr. Kalley encontrou a esposa e, juntos, seguiram para a Inglaterra. Nas semanas seguintes à partida do missionário, seus discípulos, acossados, ameaçados e maltratados, também tiveram de fugir para salvar a vida. Os incidentes da Madeira coincidiram com um plano inglês de recrutar trabalhadores para as ilhas de Trinidad, Antigua e St. Kitts, e alguns navios ingleses em busca de trabalhadores haviam chegado a Funchal naquele mesmo mês. No dia 23, duzentos refugiados religiosos partiram a bordo do “William”, levando apenas a roupa do corpo. Dias depois, mais de quinhentos os seguiram no “Lord Seaton” e nos meses seguintes muitos outros abandonaram os seus lares, buscando liberdade de culto do outro lado do oceano. Estima-se que mais de dois mil evangélicos deixaram a sua ilha na perseguição de 1846.

Surpreendentemente, o movimento evangélico na Madeira não foi inteiramente suprimido e, em 1853, uma nova leva de emigrantes calvinistas partiu para o Novo Mundo. A partir de 1875, em um clima de maior tolerância e com o apoio da Igreja da Escócia, várias igrejas presbiterianas foram formadas naquela ilha, que continuaram em existência ao longo do século 20.[11] Com o apoio de igrejas norte-americanas, muitos dos madeirenses que se fixaram nas Antilhas, bem como os emigrados de 1853, foram para os Estados Unidos, estabelecendo-se nas cidades de Springfield e Jacksonville, no Estado de Illinois.[12] As igrejas que formaram eventualmente filiaram-se à Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, a Igreja do Norte (PCUSA), e deram uma importante contribuição para o início dos trabalhos congregacional e presbiteriano no Brasil.

3. Interregno e transferência para o Brasil

Depois de passar algum tempo na Escócia e na Inglaterra, Kalley trabalhou como médico missionário durante dois anos na Ilha de Malta e outros dois na Palestina (1850-1852). Em Safed, organizou uma pequena igreja na qual metade dos participantes era constituída de judeus convertidos e a outra metade de ex-muçulmanos e nestorianos.[13] Sua primeira esposa, Margaret, veio a falecer no início de 1852. No final daquele ano, ele contraiu segundas núpcias com Sarah Poulton Wilson (1825-1907), a quem conhecera na Palestina. Sarah nasceu em Nottingham, Inglaterra, sendo sobrinha pelo lado materno de Samuel Morley, rico industrial e filantropo, membro destacado do Parlamento Britânico e líder da igreja congregacional.[14] A família também tinha ligações com os Irmãos de Plymouth através de outro tio de Sarah, John Morley.[15]

Sarah recebeu uma educação esmerada e cultivou muitos dotes artísticos, revelados mais tarde na poesia, na pintura e na música. Foi grande defensora do nascente movimento das Escolas Dominicais. Seu trabalho evangélico teve início em Torquay, onde dirigiu uma classe bíblica que se tornou instrumento para a conversão de muitos jovens. Ela visitou a Palestina em março de 1852 em companhia de um irmão mais novo, que veio a falecer de tuberculose em Beirute.[16] Nessa viagem Sarah conheceu o Dr. Kalley, com o qual veio a casar-se em 14 de dezembro do mesmo ano. Esse casamento contribuiu para que Kalley eventualmente se afastasse de suas raízes presbiterianas e se voltasse para o congregacionalismo. Devido às suas extraordinárias qualificações, Sarah deu contribuições à obra do esposo que exigem uma análise mais detalhada do que é possível neste estudo.

No inverno seguinte (1853-1854), Kalley, acompanhado da esposa, foi visitar os amigos madeirenses em Illinois. Passando por Nova York, esteve na Sociedade Bíblica Americana, onde conversou a respeito dos refugiados portugueses. Poucos dias depois, o dirigente da Sociedade Bíblica recebeu uma carta do Rev. James Cooley Fletcher (1823-1901),[17] pastor presbiteriano que trabalhava no Rio de Janeiro para a Sociedade de Amigos dos Marinheiros Americanos, pedindo-lhe o envio de alguns refugiados madeirenses para trabalharem no Brasil como colportores da Sociedade Bíblica. Kalley foi informado sobre isso e decidiu ele mesmo vir para o Brasil no ano seguinte.

O casal Kalley partiu de Southampton em 9 de abril de 1855, chegando ao Rio de Janeiro no dia 10 de maio. Por dois meses e meio se hospedaram em hotéis, mas não encontraram um local adequado onde pudessem residir e iniciar o trabalho evangélico. No final de junho visitaram Petrópolis e ficaram bem impressionados com a cidade. Viram que havia melhor possibilidade de iniciar o trabalho missionário ali do que no Rio de Janeiro, graças ao auxílio que poderiam receber dos colonos alemães. Souberam que uma bela propriedade (Gernheim = lar muito amado) situada em uma encosta do Bairro Suíço ficaria disponível em outubro. Mudaram-se para Petrópolis em fins de julho, hospedando-se em um hotel. Tendo feito amizade com a família do embaixador americano, Sr. Webb, que ocupava Gernheim, foi-lhes permitido iniciar ali uma escola dominical. Na tarde do dia 19 de agosto, a Sra. Kalley iniciou a classe dominical com as crianças da casa e de uma família vizinha. Leram a história de Jonas, cantaram hinos[18] e oraram. Assim nasceu a primeira Escola Dominical do Brasil. Algum tempo depois foi criada uma classe de adultos, dirigida pelo Rev. Kalley. Em 15 de outubro o casal mudou-se para Gernheim. A escola dominical cresceu e no ano seguinte surgiram classes em alemão, inglês e português, para crianças de oito anos para cima.

De agosto de 1855 a maio de 1856, o Rev. Kalley escreveu várias cartas aos irmãos de Illinois, convidando-os para virem ajudá-lo no Brasil. Em dezembro de 1855 chegou William D. Pitt, que havia sido aluno de escola dominical de D. Sarah na Inglaterra, e em agosto de 1856 vieram Francisco da Gama, Francisco de Souza Jardim e Manoel Fernandes, com suas famílias. No dia 10 de agosto daquele ano, na casa alugada por esses crentes no morro da Saúde, o Rev. Kalley oficiou pela primeira vez a Ceia do Senhor, com a presença de dez pessoas. O missionário viu desde o início a importância da literatura e convidou o Sr. Gama para trabalhar como colportor, o que este fez com muita eficiência, vendendo Bíblias e livros evangélicos. Algumas publicações foram encomendadas de Lisboa e outras produzidas pelo próprio Dr. Kalley. Ele também traduziu a famosa obra de John Bunyan, “A Viagem do Cristão” (O Peregrino), publicando-a no Correio Mercantil (outubro a dezembro de 1856) e depois em forma de livro. Também escrevia artigos religiosos nesse periódico. Ao mesmo tempo, desde que chegou a Petrópolis, Kalley procurou relacionar-se com as autoridades civis, inclusive com o imperador Pedro II, do qual se tornou amigo. Como seu vizinho, este foi visitá-lo várias vezes para ouvir sobre as suas viagens através da Palestina.

O casal Kalley partiu para a Inglaterra no dia 17 de janeiro de 1857, a fim de visitar uma tia de Sarah que se achava gravemente enferma. De Londres, onde ficaram por alguns meses, o Rev. Kalley enviou para o Rio de Janeiro uma grande quantidade de literatura. Chegaram de volta ao Brasil em 9 de outubro. Extremamente cauteloso após as perseguições sofridas na Ilha da Madeira, Kalley trabalhou dentro dos limites impostos pela lei brasileira, adotando como modelo básico de evangelização o “culto doméstico”.[19] No dia 8 de novembro, foi batizado o primeiro crente em Petrópolis, o português José Pereira de Souza Louro. No Rio, havia reuniões em português na casa de Francisco da Gama e em inglês na residência de William Pitt. Nos meses seguintes, começaram a surgir artigos na imprensa do Rio revelando preocupação com a propaganda protestante e a distribuição de “Bíblias falsas”. Um motivo a mais de inquietação para os líderes católicos eram as discussões sobre a instituição do casamento civil e outras medidas liberalizantes do governo imperial.

4. O congregacionalismo brasileiro

Em 11 de julho de 1858, Kalley batizou o seu primeiro converso brasileiro, Pedro Nolasco de Andrade, no Rio de Janeiro. Esse dia passou a ser considerado como a data da organização da “Igreja Evangélica”, mais tarde denominada Igreja Evangélica Fluminense (18-09-1863), para distingui-la da igreja presbiteriana organizada pelo Rev. Ashbel Green Simonton no início de 1862. Em Petrópolis, porém, não se chegou a organizar uma igreja, embora houvesse reuniões domésticas semanais, e os crentes ali batizados foram incorporados à igreja do Rio de Janeiro. A igreja do bairro da Saúde foi a primeira comunidade evangélica de língua portuguesa a surgir no Brasil, isto é, a primeira igreja “de missão” que conseguiu lançar raízes permanentes no país. Todas as outras igrejas existentes naquela época ou anteriormente eram constituídas de estrangeiros.[20] Kalley também continuou a exercer suas atividades como médico, prestando assistência gratuita aos pobres e oferecendo os seus serviços à comunidade, como ocorreu durante uma epidemia de cólera em Petrópolis no mesmo ano da sua chegada ao Brasil.

Outro marco importante do ministério do Dr. Kalley foi o batismo de duas senhoras de alta posição, Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto, ocorrido em Petrópolis no dia 7 de janeiro de 1859. Dona Gabriela era irmã do Marquês do Paraná e do Barão de Santa Maria. Elas haviam sido evangelizadas pelo crente pioneiro José Pereira de Souza Louro e mais tarde se transferiram para a igreja presbiteriana, na qual permaneceram até o final da vida. Esse batismo parece ter contribuído para o surgimento de pressões contra o trabalho do missionário, que em 26 de maio daquele ano foi proibido de clinicar pelo subdelegado de Petrópolis.

Mediante pressão do núncio, o governo imperial fez chegar à Legação Britânica um comunicado com diversas queixas contra Kalley, tais como propaganda de doutrinas contrárias à religião do Estado e tentativa de conversão de católicos à fé protestante. O missionário formulou uma série de quesitos sobre as suas atividades e os apresentou simultaneamente aos melhores juristas da época, os Drs. Joaquim Nabuco, Urbano S. Pessoa de Melo e Caetano Alberto Soares. Os pareceres foram altamente satisfatórios e no dia 16 de julho Kalley enviou à Legação Britânica uma resposta ao comunicado do Ministro do Governo e uma carta particular ao cônsul William Stuart explicando as suas atividades e os tipos de pessoas que freqüentavam as suas reuniões. Concluiu que a liberdade por ele exercida estava dentro dos limites da lei. Acrescentou que, caso o governo insistisse nas suas tentativas de silenciá-lo, se sentiria na direito de publicar os motivos para tanto e fazê-los conhecidos em todos os países de onde o Brasil esperava colonos.[21]

No dia 29 de agosto de 1859, Kalley defendeu tese na Escola de Medicina do Rio de Janeiro, sendo reconhecido como médico e autorizado a exercer essa profissão no Brasil. Nesse ínterim, recebeu forte apoio de brasileiros e alemães de Petrópolis, que produziram abaixo-assinados em sua defesa.[22] Kalley fez uma segunda viagem à Inglaterra de agosto de 1862 a agosto de 1863. Pretendia tratar do joelho que havia ferido em um acidente com o cavalo, procurar uma pessoa para ajudá-lo no seu trabalho e visitar a Palestina. Antes da sua partida, a igreja elegeu os seus primeiros presbíteros. Kalley retornou ao Rio de Janeiro no início de setembro de 1863 e no dia 2 de outubro foi formalmente eleito pastor da igreja a fim de poder realizar casamentos religiosos com efeitos civis, uma importante conquista dos protestantes brasileiros.[23] Em novembro de 1865, preocupado com o fato de um membro da sua igreja possuir escravos, Kalley fez uma “exortação” expondo seu ponto de vista contrário à escravidão. Seu primeiro pastor-auxiliar foi o Rev. Richard Holden (1828-1886), de março de 1865 a julho de 1871.[24] Isso permitiu a Kalley fazer uma terceira viagem mais prolongada à Europa e à Palestina, ausentando-se por dois anos e meio (dezembro de 1868 a junho de 1871). Em fins de 1873, o missionário foi para Recife, onde fundou a Igreja Evangélica Pernambucana, cujo primeiro pastor residente foi o Rev. James Fanstone (1851-1937), pai do Dr. James Fanstone (1890-1987), fundador do Hospital Evangélico Goiano, em Anápolis.

Em 31 de dezembro de 1875, foi eleito co-pastor da Igreja Fluminense o Rev. João Manoel Gonçalves dos Santos, um membro da igreja que havia estudado desde 1872 no “Pastor’s College”, de Charles H. Spurgeon, em Londres. Ele haveria de pastorear a igreja por quase quarenta anos. Estando mais livre das preocupações do trabalho pastoral, o Rev. Kalley pode dedicar-se à preparação de uma súmula das doutrinas aceitas pela Igreja Evangélica Fluminense, que recebeu o título de “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo” e foi publicada em 1876. No dia 2 de julho daquele ano, após o acréscimo de um artigo sobre a natureza de Deus (atual artigo 4), a igreja aceitou formalmente os 28 artigos, que são até hoje a base doutrinária dos congregacionais brasileiros. Em novembro de 1880, o governo imperial haveria de sancionar tanto os artigos orgânicos (estatutos) da igreja quanto a sua base doutrinária.

O Dr. Kalley partiu definitivamente para a Escócia no dia 10 de julho de 1876, vindo a falecer em Edimburgo em 17 de janeiro de 1888.[25] Até o seu falecimento, não deixou de corresponder-se com freqüência com os líderes de suas igrejas no Brasil e em outros lugares de língua portuguesa (Portugal, Madeira, Trinidad, Illinois). Foi o pai espiritual e o mentor de toda uma geração de ministros e missionários que imitaram a sua visão, zelo e dedicação. Sentiu o desejo de criar uma sociedade missionária não-denominacional para enviar obreiros ao Brasil, desejo esse cumprido por sua esposa anos mais tarde, com a criação da sociedade “Help for Brazil” (Auxílio para o Brasil), precursora da União Evangélica Sul-Americana (UESA).[26]

5. Kalley e os presbiterianos

Como já foi observado, Kalley nasceu na Igreja da Escócia e manteve ligações com o presbiterianismo durante boa parte da sua vida. As igrejas que resultaram do seu trabalho na Ilha da Madeira, onde seus discípulos eram conhecidos como “calvinistas”, bem como aquelas fundadas por refugiados madeirenses no Caribe e nos Estados Unidos, foram todas presbiterianas.[27] No Brasil, embora ele tenha sido o introdutor do congregacionalismo, suas ligações com os presbiterianos e suas contribuições diretas e indiretas à obra presbiteriana são dignas de nota.[28]

Em primeiro lugar, houve o relacionamento pessoal e direto entre Kalley e o pioneiro do presbiterianismo brasileiro, Ashbel Green Simonton. No mesmo mês em que chegou ao Brasil (agosto de 1859), Simonton visitou a igreja do bairro da Saúde e conversou com o Dr. Kalley, que em tom paternal o incentivou e lhe transmitiu conselhos e advertências.[29] Simonton passou a pregar com certa regularidade na Igreja Evangélica, até que, no mês de dezembro, surgiu um conflito entre os dois obreiros. Devido a um mal-entendido, Kalley sentiu que o colega mais jovem estava invadindo o seu campo de trabalho e expressou as suas críticas a terceiros, inclusive através de uma nota anônima. O problema foi resolvido satisfatoriamente quando, ao ser interpelado, Kalley pediu desculpas por todas as alegações levantadas, revelando, segundo o testemunho do próprio Simonton, um espírito profundamente humilde e generoso.[30] Nos anos seguintes, formaram-se laços muito estreitos entre as duas comunidades evangélicas. Em 1896, durante o pastorado do Rev. James B. Rodgers, quando o templo presbiteriano precisou de uma grande reforma, a igreja reuniu-se no templo da sua congênere durante todo o período das obras.[31]

Kalley também contribuiu com a obra presbiteriana em um sentido mais amplo, através de pessoas originalmente ligadas ao seu trabalho. Quatro líderes das igrejas portuguesas de Illinois foram notáveis missionários presbiterianos no Brasil: Emanuel N. Pires (1866-1869), Hugh Ware McKee (1867-1870), Robert Lenington (1868-1886) e João Fernandes Dagama (1870-1891).[32] Pires e McKee foram dois dos primeiros pastores da Igreja Presbiteriana de São Paulo, por breve tempo. Todavia, Lenington e Dagama tiveram longos ministérios, evangelizando extensamente o interior de São Paulo e, no caso de Lenington, também o Paraná e o sul de Minas. Outro pioneiro extremamente operoso foi William Dreaton Pitt, um inglês que estudou na escola dominical de Sarah Kalley em Torquay, trabalhou junto aos portugueses em Illinois e foi a primeira pessoa a vir para o Brasil em resposta a um apelo de Kalley. Foi um dos fundadores da Igreja Evangélica Fluminense e um dos quatro primeiros presbíteros daquela igreja. Mudando-se para São Paulo, onde trabalhou no comércio, associou-se aos presbiterianos, tornando-se um valioso cooperador do Rev. Alexander Blackford. Faleceu em 1870, poucos meses após a sua ordenação ao ministério. O ministro presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1822-1873), ex-sacerdote e primeiro pastor protestante de nacionalidade brasileira, trabalhou durante oito meses em 1867 e 1868 nas igrejas portuguesas de Illinois, com as quais se correspondeu até o final da sua vida.

Outros elementos ligados a Kalley que prestaram o seu concurso à obra presbiteriana no Brasil foram colportores, os mais destacados dentre eles tendo sido Manoel Pereira da Cunha Bastos, que precedeu o Rev. Blackford em São Paulo, e Manoel José da Silva Viana, fundador da igreja congregacional em Recife e colaborador do Rev. John Rockwell Smith. O português Bastos, um ex-diácono da Igreja Evangélica Fluminense, tornou-se colportor da Sociedade Bíblica Americana e foi enviado a São Paulo pelo Rev. Simonton, poucos meses antes da chegada de Blackford. Evangelizou um patrício, José Maria Barbosa da Silva, seu vizinho à rua Aurora, que por sua vez foi instrumento para a conversão dos jovens portugueses Antônio Bandeira Trajano e Miguel Gonçalves Torres, dois dos primeiros pastores presbiterianos nacionais.[33] Um último exemplo de contribuição congregacional ao presbiterianismo brasileiro foram alguns membros das igrejas de Kalley que se filiaram à igreja presbiteriana, dentre os quais se destacam as já citadas Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto. Henriqueta veio a casar-se com o irlandês William Esher e foi membro sucessivamente das Igrejas do Rio e de São Paulo. Foi mãe do Dr. Nicolau Soares do Couto Esher (1867-1943), conhecido médico e primeiro presidente da Associação Cristã de Moços do Rio e de São Paulo.[34] As ligações entre congregacionais e presbiterianos no Brasil se explicam pelo fato de, por muitos anos, esses terem sido os únicos representantes do protestantismo missionário no país, bem como pelas suas afinidades históricas e doutrinárias.

6. Peculiaridades pessoais e teológicas

Ao se avaliar a personalidade e contribuições desse missionário pioneiro, vários pontos merecem consideração, a começar do fato de que ele era movido por um profundo senso de vocação e de compromisso com a evangelização de outros povos. Ao deixar o conforto de sua terra natal e buscar o bem-estar material e espiritual desses povos, Kalley procurou identificar-se com as culturas em que trabalhou, embora não tenha se libertado de vários condicionamentos que afetavam a maior parte dos missionários europeus e americanos da época. Um exemplo disso era a sua tendência paternalista, própria de alguém que se considerava pertencente a uma cultura superior e que tinha, portanto, algo a transmitir a pessoas menos instruídas. Ele pagava as contas, administrava os fundos, decidia o que era heresia ou não, estabelecia as metas e era a instância final de apelação para todos os problemas,[35] mas não teve muita preocupação em preparar líderes para substituí-lo. As suas igrejas ficaram excessivamente dependentes dele e experimentaram pequeno crescimento após o seu afastamento e morte.

Outra razão para o pequeno crescimento da obra congregacional foi o isolamento inicial das comunidades, ciosas do princípio da plena autonomia da igreja local. Cinqüenta e cinco anos após a criação da Igreja Evangélica Fluminense (1858) havia somente treze igrejas organizadas no país. Foi só então, em 1913, que os congregacionais começaram a criar uma estrutura nacional, realizando a sua primeira convenção geral. Em termos de comparação, os presbiterianos, cuja primeira igreja foi organizada em 1862, já possuíam cerca de sessenta comunidades por ocasião da criação do Sínodo (1888) e em 1910, época da organização da Assembléia Geral, o número de igrejas haviam subido para 150, apesar das grandes perdas sofridas com o cisma independente de 1903.

Curiosamente, embora tivesse um forte sentimento anticatólico, Kalley demonstrou algumas vezes uma atitude positiva para com certos representantes da igreja majoritária, tendo se tornado amigo do bispo de Funchal e de um sacerdote culto do Rio de Janeiro. No Brasil, ao menos por algum tempo, ele não exigiu o rebatismo dos seus conversos, a não ser que o solicitassem explicitamente. Todavia, sua “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”, adotada como padrão doutrinário das igrejas congregacionais no Brasil, parece apontar em seu artigo 25 para o batismo de adultos somente.[36] Segundo o Rev. James Fanstone, Kalley se sentia inquieto quanto à validade do seu próprio batismo e no final da vida teria considerado seriamente a possibilidade de submeter-se ao batismo por imersão.[37] As noções de Kalley acerca da Ceia do Senhor são mais zuinglianas do que calvinistas: o sacramento é antes uma comemoração da morte de Cristo no passado distante e um testemunho ao mundo do que a alegre celebração da sua presença viva e do seu sacerdócio atual.[38] Outra característica de Kalley era a sua forte ênfase à santidade do domingo: ninguém era admitido como membro da igreja se não o observasse criteriosamente, mantendo-se afastado das atividades seculares.[39]

Seu uso da medicina e da educação como meios de serviço cristão e instrumentos para a evangelização continua válido até hoje. Outras estratégias que utilizou também se revelaram muito eficazes e exerceram uma influência duradoura sobre o protestantismo luso-brasileiro: reuniões informais nos lares; distribuição ampla das Escrituras (na tradução católica do padre Figueiredo) e de literatura cristã; uso da imprensa diária para a publicação de artigos e livros (como fez no Rio de Janeiro ao publicar O Peregrino, de John Bunyan); produção de hinos visando a instrução dos crentes e a evangelização (hinos esses utilizados por muitas gerações de evangélicos)[40]; treinamento de líderes leigos como colportores e evangelistas. Os esforços de Kalley no sentido de ter um bom relacionamento com as autoridades civis e outros líderes destacados, especialmente no Brasil, onde chegou a fazer amizade com o próprio imperador, expandiram os limites da liberdade religiosa e ajudaram a preparar as condições para a introdução e rápido crescimento do protestantismo.

Formalmente, Kalley permaneceu um presbiteriano toda a sua vida. Todavia, a sua personalidade e experiências contribuíram para torná-lo um obreiro auto-sustentado que nunca trabalhou sob os auspícios de qualquer denominação ou agência missionária. Seus conversos da Ilha da Madeira abraçaram o presbiterianismo nos diferentes países em que viveram graças, principalmente, ao apoio fiel e decidido da Igreja da Escócia. Todavia, no Brasil ele veio a adotar a forma de governo congregacional. Isso é explicado por vários fatores: sua falta de simpatia por estruturas denominacionais, suas ligações com a Sociedade Missionária de Londres (majoritariamente congregacional), sua ordenação por um grupo independente de ministros e o seu casamento com Sarah Wilson, cuja família tinha fortes laços com essa igreja. Alguns autores chamam a atenção para uma conexão darbista, visto que um tio de Sarah era filiado aos Irmãos de Plymouth e o Rev. Richard Holden, um inglês que trabalhou com Kalley por vários anos no Rio de Janeiro, filiou-se a esse movimento e criou uma divisão na Igreja Fluminense em torno dessa questão. Kalley deplorava o anti-eclesiasticismo dos Irmãos e algumas de suas doutrinas, chegando a escrever oito longas cartas pastorais à Igreja Fluminense sobre os erros do darbysmo (1878-1879), mas certamente foi influenciado por seu estilo de vida simples, seu culto singelo e seu “franco individualismo”.[41]

A teologia de Kalley pode ser descrita como um tipo de evangelicalismo amplo. Duas expressões significativas das suas idéias teológicas são os hinos que ele e sua esposa escreveram e a “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”. O professor Antonio Gouvêa Mendonça sintetizou as concepções do casal Kalley expressas em seus hinos: Deus ama todos os seres humanos, apesar dos seus pecados; a resposta a esse amor é individual e voluntária (em contraste com a doutrina calvinista da predestinação); a salvação não é definitiva, como no calvinismo ortodoxo, mas está sujeita a quedas; isso requer uma ética rigorosa que traça uma nítida linha divisória entre o fiel e o mundo.[42] O referido autor conclui que Kalley era um legítimo representante do puritanismo escocês mesclado com o wesleyanismo metodista. A “Breve Exposição” declara em seu artigo 19 que a igreja de Cristo é composta “de todos os sinceros crentes no Redentor, os quais foram escolhidos por Deus, antes de haver mundo, para serem chamados e convertidos nesta vida, e glorificados durante a eternidade”.[43] Todavia, a maior parte dos artigos poderiam ser aceitos por qualquer evangélico, reformado ou não. Os elementos específicos do calvinismo, tais como a soberania de Deus, a eleição divina e a perseverança dos santos, não são enfatizados.[44]

Apesar das deficiências que possa ter tido, Kalley ocupa um lugar de honra na história das modernas missões protestantes. No que diz respeito ao Brasil, ele estabeleceu a primeira igreja protestante permanente entre os brasileiros de língua portuguesa e foi instrumento para a abertura das portas para a evangelização do povo brasileiro. Através de sua amizade com elementos destacados da sociedade, dos seus métodos de trabalho, de suas consultas a juristas respeitados e de suas reações a tentativas de intimidação por parte do clero, ele contribuiu para a ampliação da liberdade religiosa no Brasil, que veio a ser usufruída por outros missionários e igrejas. Através de suas práticas evangelísticas, dos cultos domésticos e da escola dominical, do uso da hinologia, literatura e imprensa, de seus colportores e conversos que depois se tornaram presbíteros, pastores e evangelistas em outras igrejas, Kalley exerceu uma profunda influência sobre os mais diferentes aspectos do protestantismo nacional. Em especial, seu modelo de evangelização e culto exerceu uma influência profunda e duradoura na cultura evangélica brasileira. A venda de Bíblias e Novos Testamentos de casa em casa, a distribuição de folhetos, as conversas com amigos e colegas de trabalho sobre Cristo e os convites para participar dos cultos domésticos diários foram formas não-agressivas e criativas que permitiram a inserção da nova opção religiosa num período em que ainda existiam diversas restrições legais à propaganda protestante.

Erasmo Braga, o grande líder e estudioso do protestantismo brasileiro, nutria grande admiração pela obra congregacional no Brasil, entendendo que refletia a influência do não-conformismo inglês e do espírito independente dos puritanos. Fascinava-o em especial o caráter eminentemente nacional do novo movimento. Escrevendo em 1931, Braga afirmou: “Sua característica peculiar é o fato de que se trata de um movimento inteiramente nacional, que nunca esteve eclesiasticamente sujeito ou foi financeiramente dependente de qualquer sociedade estrangeira e representa na América Latina uma tendência muito significativa, a saber, uma resposta de mentes ibero-americanas ao Evangelho que não pode ser atribuída à atividade missionária estrangeira”.[45] Kalley tornou-se um marco na história das missões e um pioneiro reverenciado no vasto mundo de língua portuguesa. Dezenas de homens e mulheres influenciados por ele divulgaram a mensagem cristã e plantaram igrejas na Ilha da Madeira, nas Antilhas, nos Estados Unidos, em Portugal e no Brasil. Seu trabalho continua a produzir frutos no presente. Pessoas que pouco sabem a seu respeito são herdeiras do seu ministério e seguem as suas pegadas. A sua coragem, heroísmo e fidelidade continuam a inspirar os cristãos evangélicos – reformados e não-reformados – no cumprimento da tarefa inacabada.


English Abstract

The Scottish medical missionary Robert R. Kalley (1809-1888) holds an honorable place in the Protestant missionary movement, having been a prominent pioneer in Portuguese-speaking countries. Struggling against immense difficulties and occasional deadly opposition, he was instrumental to the establishment of Presbyterianism in the island of Madeira (1839) and Congregationalism in Brazil (1855). He also influenced Portuguese-speaking churches in the Caribbean, Portugal, and the United States. His wisdom, courage, and commitment are an inspiration to the new generations of evangelical Christians. The author shows how Kalley left his native Scotland and ended up in the isolated Atlantic island of Madeira. He then proceeds to describe how Kalley’s medical and evangelistic efforts produced both an increasing number of converts and violent outbursts of religious intolerance. While thousands of “Calvinists” fled the island for their lives and eventually settled in the Antilles and the United States, Kalley spent a few years in Malta and Palestine. After the death of his first wife, he married a refined and talented Englishwoman, Sarah P. Wilson, member of a prominent Congregational family. Eventually the Kalleys went to Brazil, where they started the first native Protestant church in the history of that country. The author finishes his analysis by pointing out some interesting connections between Kalley and the Presbyterian missions in Brazil and makes a few remarks about his personality, theological ideas, and lasting influence on Brazilian Protestantism.

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[1] Uma versão resumida deste artigo, sob o título “Robert Kalley: De goede engelse dokter” (Robert Kalley: O bom doutor inglês) foi publicada na revista holandesa Terdege (23/10/2002), 28-29, 31.

[2] A Igreja da Escócia foi criada por ato do Parlamento em 1560, graças os esforços do reformador John Knox (c.1514-1572). Conhecida popularmente como “Kirk”, ela tem sido sempre presbiteriana, à exceção de dois períodos de episcopalismo modificado na época dos reis Stuart (século 17).

[3] A principal fonte dos dados históricos/biográficos deste artigo é Michael P. Testa, “The Apostle of Madeira: Dr. Robert Reid Kalley”, Journal of Presbyterian History 42/3 (Setembro 1964), 175-197, e 42/4 (Dezembro 1964), 244-271. A versão eletrônica do texto pode ser encontrada em:http://freepages.genealogy.rootsweb.com/~klondike98/Exiles/apostle/Apostle%20of%20Madeira.rtf . Um estudo mais recente é a obra de William B. Forsyth, The Wolf from Scotland: The Story of Robert Reid Kalley, Pioneer Missionary (1988). Um texto bastante sucinto pode ser encontrado em Ruth A. Tucker, “Até aos Confins da Terra”. Uma História Biográfica das Missões Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996), 503-507.

[4] A Sociedade Missionária de Londres, fundada em 1795, foi uma conseqüência do avivamento evangélico inglês do século 18 e, mais especificamente, dos esforços de William Carey (1761-1834), que resultaram no movimento missionário protestante do século 19. A sociedade era de caráter interdenominacional, mas seus fundos e pessoal procediam majoritariamente dos congregacionais. Kenneth S. Latourette, A History of Christianity, 2 vols., Vol. II: Reformation to the Present (Nova York: HarperCollins, 1975), 1033.

[5]  Quanto à Ata da Comissão de Exame, ver Testa, “The Apostle of Madeira”, I:177. Quanto à ordenação, ver Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense: 1855-1932 (Rio de Janeiro, 1932), 27, 30s. O diploma de ordenação, escrito em latim, declara: “Por esta carta, fazemos saber a todos que o Sr. Robert Reid Kalley, versado em ciências e letras, e aprovado pela piedade da sua vida para o sacrossanto ministério cristão, foi ordenado, tendo sido oferecidas preces com imposição de mãos, por nós... (seguem os nomes dos seis ministros). Londres, 18 de julho de 1839 A.D.”

[6] Os discípulos de Kalley na Ilha da Madeira eram regularmente denominados “calvinistas”, o que aponta não tanto para as convicções teológicas do missionário quanto para as suas raízes escocesas e presbiterianas.

[7] Uma obra importante escrita por uma testemunha ocular é: João Fernandes Dagama, Perseguição dos Calvinistas da Madeira: Subsídios para a História das Perseguições Religiosas (Rio Claro: Tipografia Magalhães e Gerlach, 1896). O Rev. Dagama (1830-1906), um dos conversos de Kalley, foi missionário e pastor presbiteriano no Brasil por mais de trinta anos.

[8] Ver Richard P. McBrien, Os Papas – Os Pontífices: de São Pedro a João Paulo II (São Paulo: Loyola, 2000), 343-345, e Eamon Duffy, Santos e Pecadores: História dos Papas (São Paulo: Cosac & Naify, 1998), 218-221.

[9] No seu valioso estudo, Michael Testa destaca a extraordinária contribuição do Rev. Hewitson para a obra ligada a Kalley, tanto na Ilha da Madeira como no Caribe. Ver “The Apostle of Madeira”, I:187-193; II:248s.

[10] Testa, “The Apostle of Madeira”, I:191s.

[11] No dia 25 de janeiro de 1999, em uma cerimônia ecumênica que contou com a presença de representantes de todas as confissões cristãs existentes na Ilha da Madeira, o bispo de Funchal, D. Teodoro de Faria, se penitenciou em nome da igreja católica pelos episódios de intolerância contra os calvinistas ocorridos mais de um século e meio antes. Verhttp://www.presbiterianismo.com.br/Historia/Funchal.htm.

[12] O rigor do clima dessa região levou alguns dos imigrantes a se dirigirem para Massachusetts e Nova Jersey. Émile-G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, 2ª ed. (Rio de Janeiro e São Paulo: JUERP/ASTE, 1981), 50.

[13] Testa, “The Apostle of Madeira”, II:256.

[14] Para maiores informações sobre a família de Sarah Kalley, ver Carl Joseph Hahn, História do Culto Protestante no Brasil (São Paulo: ASTE, 1989), 138s (e notas).

[15] Os Irmãos de Plymouth surgiram como um protesto contra a frieza, formalismo e sectarismo existentes nas igrejas evangélicas no início do século 19. Embora o movimento tenha iniciado em Dublin, Irlanda, a primeira congregação foi criada em Plymouth, Inglaterra, em 1831, sendo seu líder mais influente John Nelson Darby (1800-1882), o criador do dispensacionalismo. O grupo caracterizava-se por sua simplicidade de culto, profunda devoção, zelo evangelístico e interesse por estudos proféticos. Em 1848 houve um cisma que resultou em dois grupos: Irmãos Abertos e Irmãos Exclusivos (Darbistas). Ver J. D. Douglas, ed., The New International Dictionary of the Christian Church (Grand Rapids: Zondervan, 1978), 789.

[16] Segundo Hahn, Sarah havia ido com o pai ao Egito e à Síria para acompanhar o irmão, que veio a morrer de tuberculose em Beirute, sendo sepultado no Cemitério de Estrangeiros. A primeira esposa de Kalley morrera alguns dias antes e eles se encontraram no cemitério. História do Culto Protestante no Brasil, 149 (nota 385).

[17] Para valiosas informações sobre Fletcher, ver David Gueiros Vieira, O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, 2ª ed. (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980), 61-94.

[18] Entre 1842 e 1846, quando ainda na Ilha da Madeira, o Rev. Kalley escreveu sete hinos (“Louvemos todos ao Pai do céu”, “Todos que na terra moram”, “O meu fiel Pastor”, “Jesus Cristo já morreu”, “Alma! escuta ao bom Senhor!”, “Cá sofremos aflição” e “Tem compaixão de mim, Senhor”). Esses provavelmente foram os primeiros hinos evangélicos cantados no Brasil, sendo posteriormente incorporados ao hinário Salmos e Hinos. Henriqueta Rosa Fernandes Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil: Contribuição à sua História (Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1961), 109.

[19] Duncan Alexander Reily, História Documental do Protestantismo no Brasil (São Paulo: ASTE, 1993), 103.

[20] Os metodistas já haviam feito um trabalho inicial no Rio de Janeiro (1835-1841), sob a liderança dos Revs. Justin Spaulding e Daniel Parish Kidder, trabalho esse que teve de ser interrompido e não deixou frutos em termos de conversos e igrejas. Kidder tornou-se um personagem célebre na história religiosa do Brasil, tendo sido o primeiro missionário protestante a viajar extensamente pelo país, distribuindo as Escrituras e fazendo contatos com políticos e intelectuais. Registrou as suas experiências na importante obra Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, publicada originalmente em 1845, em Filadélfia.

[21] Ver a narrativa detalhada dos fatos em Reily, História Documental do Protestantismo no Brasil, 104-108.

[22] Esboço Histórico da Escola Dominical, 70s.

[23] Léonard, O Protestantismo Brasileiro, 52-54.

[24] Sobre o controvertido Holden, ver o rico material reunido por Vieira, Protestantismo, Maçonaria e Questão Religiosa, 163-207.

[25] A obra de Kalley no Brasil é descrita de modo sucinto em Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense e com maiores detalhes em uma obra de seu filho adotivo João Gomes da Rocha, Lembranças do Passado, 3 vols. (Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1941-1946). Um 4º volume foi publicado em 1957 pelo periódico O Cristão.

[26] Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil, 119. As igrejas que se organizaram como fruto do trabalho da UESA se filiaram a dois grupos distintos com base na forma adotada para o batismo: União das Igrejas Evangélicas Congregacionais (aspersão) e Igreja Cristã Evangélica do Brasil (imersão). Os dois grupos se uniram em 1942, surgindo a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais e Cristãs do Brasil. Quanto às dificuldades encontradas pelos congregacionais brasileiros para definir a sua identidade denominacional, ver Reily, História Documental do Protestantismo no Brasil, 219-222.

[27] Em Springfield, Illinois, os imigrantes organizaram a Primeira Igreja Presbiteriana Portuguesa (1849) e a Segunda Igreja Presbiteriana Portuguesa (1858). Em Jacksonville, no mesmo estado, também surgiram duas igrejas com os mesmos nomes, em 1849 e 1855. A razão da existência de duas igrejas em cada cidade foi a controvérsia então existente no presbiterianismo americano entre “Velha Escola” e “Nova Escola”.

[28] As ligações entre presbiterianos e congregacionais eram freqüentes. Um exemplo bem conhecido foi o Plano de União (1801-1852), um acordo de cooperação feito entre as duas igrejas para a evangelização da fronteira norte-americana.

[29] Ashbel G. Simonton, O Diário de Simonton: 1852-1866, trad. D. R. Moraes Barros, 2ª ed. (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2002), 127 (31/08/1859). Simonton achou que não precisava ser tão cauteloso quanto aos seus objetivos e métodos evangelísticos como recomendava o missionário mais idoso.

[30] Ibid., 134-135 (19/12/1859). Alguns meses depois, Simonton passou duas semanas em Petrópolis, participando todas as tardes dos cultos realizadas na residência dos Kalley, que o convidaram a ficar com eles no final da sua estadia. Ver anotações de 11/04/1860.

[31] Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro: Primeiro Centenário, 1862-1962 (Rio de Janeiro, 1962), 9-11. No dia 25 de junho, em assembléia realizada na Igreja Fluminense, a comunidade presbiteriana elegeu o seu novo pastor, Rev. Álvaro Reis.

[32] As datas referem-se ao período em que eles trabalharam como missionários da PCUSA no Brasil.

[33] Merece um estudo especial a presença maciça de elementos portugueses nos primórdios da obra presbiteriana no Brasil.

[34] Alderi Souza de Matos, “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil (1859-1900): Missionários, Pastores e Leigos do Século 19” (obra a ser publicada pela Editora Cultura Cristã).

[35] Hahn, História do Culto Protestante no Brasil, 148.

[36] Diz o artigo: “O Batismo com água foi ordenado por nosso Senhor Jesus Cristo como figura do Batismo verdadeiro e eficaz, feito pelo Salvador quando envia o Espírito Santo para regenerar o pecador. Pela recepção do Batismo com água, a pessoa declara que aceita os termos do pacto em que Deus assegura aos crentes as bênçãos da salvação”. Reily entende que essa rejeição implícita do batismo infantil distingue os congregacionais brasileiros dos demais congregacionais do mundo. Ver História Documental do Protestantismo no Brasil, 113s, 158 (n. 212).

[37] Testa, “The Apostle of Madeira”, II:268, citando Eduardo H. Moreira, Vidas Convergentes (Lisboa, 1958). Testa conclui que, caso isso pudesse ser comprovado, representaria um afastamento significativo da posição anterior de Kalley quanto ao batismo por imersão. Ver Rocha, Lembranças do Passado, vol. 2, p. 37.

[38] Hahn, História do Culto Protestante no Brasil, 143s.

[39] Ibid., 153. Segundo Hahn, Kalley tornou-se mais propenso ao legalismo no Brasil do que havia sido na Ilha da Madeira, onde possuía uma sortida adega de vinho. No Rio, chegou a proibir seus adeptos de alugarem uma carruagem no domingo para irem a um funeral. Ibid., 139. É importante lembrar que o “sabatarianismo” (observância estrita do dia do Senhor segundo Êxodo 20.8) foi característico de todos os primeiros evangélicos brasileiros.

[40] O casal Kalley, principalmente D. Sarah, produziu o primeiro e mais amplamente usado hinário evangélico em português, Salmos e Hinos. A 1ª edição foi impressa pela Tipografia Laemmert, no Rio de Janeiro, em 1861, e continha 18 salmos e 32 hinos, totalizando 50 cânticos. Seguiram-se novas edições em 1865 (83 cânticos), 1868 (100 cânticos), 1873 (138 cânticos), 1877 (180 cânticos) e muitas outras. A primeira edição de hinos com música (Música Sacra Arranjada para Quatro Vozes) foi impressa em 1868, em Leipzig. Ver Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil, 111-115, 125-129.

[41] Testa, “The Apostle of Madeira”, II:267.

[42] Antonio Gouvêa Mendonça, O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil, 2nd ed. (São Paulo: ASTE, 1995), 176s. Mendonça opina que essas ênfases estão presentes no clássico de Bunyan, O Peregrino, que Kalley traduziu e publicou.

[43] Ver Reily, História Documental do Protestantismo no Brasil, 113. A Igreja Fluminense aceitou formalmente os 27 artigos escritos por Kalley, acrescidos de um outro sobre a natureza de Deus (atual artigo 4), no dia 2 de julho de 1876. Em novembro de 1880, o governo imperial sancionou tanto a base doutrinária da igreja quanto os seus estatutos (Artigos Orgânicos).

[44] Hahn, História do Culto Protestante no Brasil, 143s.

[45] Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb, The Republic of Brazil: A Survey of the Religious Situation (Londres: World Dominion Press, 1932), 57. Para reflexões adicionais sobre a vida, pensamento e práticas pastorais de Kalley, ver as obras de Douglas Nassif Cardoso, Robert Reid Kalley: Médico, Missionário e Profeta (São Bernardo do Campo, São Paulo, 2001) e Práticas Pastorais do Pioneiro na Evangelização do Brasil e de Portugal (São Bernardo do Campo, 2002).



O PROTESTANTISMO BRASILEIRO NO PERÍODO REPUBLICANO


Alderi Souza de Matos

1. Situação geral

1.1 A Proclamação da República

Em 1889, com a Proclamação da República, ocorreu a separação entre a Igreja e o Estado no Brasil, ou seja, a Igreja Católica deixou de ser a religião oficial do país e os protestantes brasileiros alcançaram a tão esperada liberdade de culto. Isto se deu através do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que declarou o seguinte:

Art. 1º – É proibido à autoridade federal, assim como à dos estados federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas.

Art. 2º – A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos que interessem ao exercício deste decreto.

Art. 3º – A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados, cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público.

Art. 4º – Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas. (...)

No ano seguinte, a Constituição de 1891 garantiu plenamente o livre exercício e propaganda da fé evangélica, bem como instituiu o casamento civil e a secularização dos cemitérios.

1.2 Conflitos

Os bispos católicos, através de várias cartas pastorais publicadas a partir de 1890, saudaram a Proclamação da República porque ela libertou a igreja da tutela e interferência do estado, que havia sido uma constante desde o início da colonização do Brasil. Ao mesmo tempo, os bispos deploraram a perda de status e influência da Igreja Católica, resultante da sua separação do Estado. Eles começaram a referir-se ao novo regime republicano como um governo ateu.

A Igreja Católica também empreendeu uma intensa campanha para recuperar os seus antigos privilégios e voltar a ocupar os espaços perdidos. Nesse esforço, a igreja mostrou-se muito agressiva contra os protestantes, acusando-os de serem inimigos da identidade e cultura católicas do Brasil e de estarem a serviço de interesses estrangeiros, principalmente norte-americanos. Os evangélicos se referiram a essas pressões com o termo “clericalismo”.

Ironicamente, após a instauração do regime republicano a ainda pequena comunidade protestante viu-se alvo de ataques e perseguições ainda maiores do que as ocorridas na época do Império. Foram comuns, nas primeiras décadas da República, as mais variadas manifestações de intolerância contra os evangélicos. As autoridades com freqüência protegiam-nos desses ataques, mas houve casos em que foram coniventes com os agressores.

Dois líderes destacaram-se nesse esforço de mobilização católica e antiprotestante: o sacerdote e conferencista Júlio Maria (que atuou no período 1890-1917) e especialmente D. Sebastião Leme da Silveira Cintra, que foi arcebispo de Olinda e Recife (1916-1921), bispo coadjutor do Rio de Janeiro (1921-1930) e cardeal arcebispo do Rio de Janeiro nos últimos anos da sua vida (1930-1942). Um dos principais instrumentos utilizados por D. Leme foi o movimento de intelectuais leigos denominado Centro D. Vital (1922-33), cujos primeiros líderes foram Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima.

Em 1925, D. Leme propôs algumas emendas à Constituição visando o reconhecimento da Igreja Católica como a religião do Brasil e o ensino religioso nas escolas públicas. Essas emendas, apresentadas pelo deputado Plínio Marques, foram vigorosamente combatidas pelos protestantes e outros grupos, sendo finalmente rejeitadas. No governo de Getúlio Vargas, a Constituição de 1934 favoreceu amplamente o catolicismo, sem, contudo, oficializá-lo.

1.3 Mobilização protestante

Em 1846, havia sido criada na Inglaterra a Aliança Evangélica, uma frente unida contra o catolicismo. Esse movimento foi iniciado nos Estados Unidos em 1867. No Brasil, os problemas iniciais do período republicano levaram os protestantes a criar uma organização semelhante, cuja primeira reunião verificou-se em São Paulo em julho de 1903. Seu primeiro presidente foi o Rev. Hugh Clarence Tucker (metodista) e seu primeiro secretário, o pastor F. P. Soren (batista).

Em 1910, realizou-se em Edimburgo, na Escócia, a célebre Conferência Missionária Mundial. Essa conferência pretendia tratar dos problemas missionários relacionados com o “mundo não-cristão” e, portanto, excluiu a América Latina das suas considerações. As missões que trabalhavam na América Latina e as igrejas dessa região sentiram-se desprestigiadas com essa atitude, que parecia questionar a validade do trabalho missionário nesse continente e a legitimidade das suas igrejas evangélicas.

Um grupo de líderes missionários interessados na América Latina reuniu-se em Nova York em 1913 e criou o Comitê de Cooperação na América Latina, que patrocinou o igualmente famoso Congresso de Ação Cristã na América Latina, reunido no Panamá em 1916. O principal líder dessa iniciativa foi Robert Elliot Speer (1867-1947), secretário da Junta de Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUSA).

Ao congresso do Panamá compareceram alguns missionários que trabalhavam no Brasil e apenas três brasileiros natos: os pastores presbiterianos Álvaro Reis, Erasmo Braga e Eduardo Carlos Pereira. Esse congresso foi seguido por vários encontros regionais, o último dos quais realizou-se no Rio de Janeiro. Pouco depois, foi criada uma sucursal do CCAL, a Comissão Brasileira de Cooperação, que teve como secretário, de 1920 a 1932, o ilustre Rev. Erasmo de Carvalho Braga (1877-1932).

Sob a liderança de Erasmo Braga, a Comissão Brasileira de Cooperação tornou-se um eficiente centro de apoio e coordenação do trabalho evangélico no Brasil. A Comissão desenvolveu muitos projetos úteis nas áreas de educação religiosa, missões aos indígenas, educação teológica e produção de literatura. Apoiou a criação de empreendimentos cooperativos como a Missão Evangélica Caiuá e a Associação Evangélica Beneficente, ambos em 1928. Outra contribuição importante foi a defesa dos direitos dos protestantes junto às autoridades governamentais, diante das ameaças do “clericalismo”.

Após a morte de Erasmo Braga, a Comissão Brasileira de Cooperação uniu-se à Federação das Igrejas Evangélicas do Brasil e ao Conselho Nacional de Educação Religiosa para formar a Confederação Evangélica do Brasil (1934), que prestou relevantes serviços à comunidade evangélica brasileira por várias décadas.

1.4 Tensões internas

Em meados da década de 50, a CEB criou a Comissão de Igreja e Sociedade, depois denominada Setor de Responsabilidade Social da Igreja. Esse órgão promoveu vários encontros, um dos quais, a chamada Conferência do Nordeste, teve como tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Com o início do regime militar em 1964, a postura progressista da CEB gerou crescentes dificuldades no seu relacionamento com o governo e com os setores mais conservadores do protestantismo brasileiro, agora marcadamente diferente daquele das décadas de 1920 e 1930.

Outro problema dos anos 60 foi uma conseqüência do Concílio Vaticano II (1962-65). Inspirados pelas mudanças que estavam ocorrendo na Igreja Católica, muitas igrejas e pastores adotaram uma postura de aproximação e diálogo com os católicos, o assim chamado “ecumenismo”. Tornou-se comum na época a realização de cultos ecumênicos ou de cerimônias ecumênicas de casamento, que geraram inúmeras controvérsias e até mesmo processos eclesiásticos nas igrejas evangélicas.

Um importante promotor do ecumenismo foi o Conselho Mundial de Igrejas, cujo processo de organização teve início em 1938 e foi concluído em 1948, em Amsterdã. Nas suas primeiras décadas, filiaram-se ao mesmo as seguintes igrejas brasileiras: Metodista (1942), Luterana (1950), Episcopal (1965) e até mesmo uma igreja pentecostal, O Brasil Para Cristo (1968).

O ecumenismo foi interpretado por muitos como mais uma manifestação do liberalismo teológico, outro fator de tensão e divisões nas igrejas protestantes do Brasil. O liberalismo clássico havia surgido no hemisfério norte na segunda metade do século passado. Na década de 1920, houve nos Estados Unidos uma famosa e acirrada controvérsia que colocou em campos radicalmente opostos os liberais ou modernistas e os fundamentalistas.

Para complicar ainda mais um quadro já tão confuso, surgiu ainda outro movimento nos anos 60 que teve grandes repercussões nas igrejas evangélicas: o movimento carismático ou de renovação. À semelhança de outros movimentos vindos para o Brasil, esse também surgiu inicialmente nos Estados Unidos, quando tanto católicos quanto membros de igrejas protestantes tradicionais começaram a ter experiências carismáticas semelhantes às dos pentecostais do início do século 20. No Brasil, esse movimento dividiu algumas igrejas e causou o surgimento de novas denominações.

Nos anos 80 e 90, novos movimentos e ênfases teológicas continuaram a ser importados dos Estados Unidos e a causar grandes transformações na face do protestantismo brasileiro. Os exemplos mais importantes são o movimento do crescimento da igreja, a teologia da prosperidade e a batalha espiritual. Outras ênfases recentes são a confissão positiva, cura interior, maldição hereditária e o movimento G-12. Existem também modismos mais passageiros que têm tido diferentes graus de impacto no ambiente evangélico.

1.5 Situação atual

Neste início do século 21, o protestantismo brasileiro impressiona muito mais pela sua diversidade e complexidade do que por elementos comuns. De um lado, há uma imensa maioria de pentecostais clássicos e a contínua proliferação e crescimento de grupos neopentecostais. Do outro lado, temos as igrejas tradicionais ou históricas, que por sua vez se subdividem em dois grupos: progressistas e conservadores. Passemos ao estudo dos diferentes períodos dessa história.

2. Primeiro período (1889-1930)

Quando da Proclamação da República, as principais denominações históricas do protestantismo já estavam presentes no Brasil, a saber, congregacionais (1855), presbiterianos (1859), metodistas (1876), batistas (1881) e episcopais (1890). Além destes, havia as antigas igrejas resultantes da imigração, como anglicanos (1816) e luteranos (1824).

O protestantismo brasileiro era ainda muito pequeno em termos numéricos. A Igreja Presbiteriana do Brasil foi a maior denominação nas primeiras décadas da República. Em 1910, quando foi criada a Assembléia Geral da IPB, os números aproximados de membros comungantes eram os seguintes: IPB: 10 mil; metodistas: 6 mil; batistas: 5 mil; IPI: 5 mil; episcopais: mil.

Em 1930, o total de presbiterianos era 44.500; batistas: 40.500; metodistas: 15.500 e Assembléia de Deus: 13.500. As maiores denominações isoladas eram a Convenção Batista Brasileira, com 34 mil comungantes e a IPB, com 29 mil. O número total dos evangélicos comungantes era de 135 mil, que, somados aos não-comungantes, totalizavam 406 mil. Os dois grupos luteranos tinham 70 mil comungantes, que subiam para 236 mil com o acréscimo dos não-comungantes. A comunidade protestante do Brasil era calculada em 700 mil pessoas, em uma população total de 41 milhões de habitantes.

Outros grupos evangélicos existentes nessa época eram os seguintes: (a) igrejas: Irmãos, Igreja Cristã, Igreja Batista Independente, Exército da Salvação, Congregação Cristã no Brasil, Adventistas; (b) missões: União Evangélica Sul-Americana; (c) entidades interdenominacionais: Sociedade Bíblica Americana, Missão Evangélica Caiuá, Comissão Brasileira de Cooperação, Associação Cristã de Moços, Associação Cristã Feminina.

A principal característica desse período foi o processo de nacionalização dos diferentes grupos, que se tornaram mais autônomos em relação às suas igrejas de origem. Vejamos os dados das principais denominações históricas:

2.1 Igreja Congregacional

Foi a primeira denominação brasileira inteiramente nacional (não sujeita a nenhuma junta missionária). Até 1913, só foram organizadas treze igrejas congregacionais no Brasil, todas autônomas. Oito eram filhas da Igreja Fluminense: Pernambucana (1873), Passa Três (1897), Niterói (1899), Encantado (1903), Paranaguá, Paracambi e Santista (1912), Paulistana (1913), e três da Igreja Pernambucana: Vitória (1905), Jaboatão (1905) e Monte Alegre (1912). Em julho de 1913, essas igrejas se reuniram na 1ª Convenção Geral, no Rio de Janeiro. Dessa época até 1942, a denominação mudou de nome dez vezes.

Os ingleses fundaram algumas missões para atuar na América do Sul: Help for Brazil (criada em 1892 por iniciativa de Sarah Kalley e outros), South American Evangelical Mission (Argentina) e Regions Beyond Missionary Union (Peru). Após a Conferência de Edimburgo (1910), essas missões vieram a constituir a União Evangélica Sul-Americana (UESA, 1911). Dos seus esforços, surgiu no Brasil a Igreja Cristã Evangélica.

2.2 Igreja Presbiteriana

A IPB alcançou a sua autonomia formal em 1888, com a criação do Sínodo do Brasil. Até então, os presbitérios brasileiros estavam filiados às igrejas norte-americanas, a do norte (PCUSA) e a do sul (PCUS). Quando se organizou o Sínodo, a IPB tinha 60 igrejas, 20 missionários e 12 pastores nacionais. De 1892 a 1903 houve uma séria crise em torno das questões missionária, educativa e maçônica que resultou em cisma, surgindo assim a Igreja Presbiteriana Independente, cujo principal líder foi o Rev. Eduardo Carlos Pereira.

Em 1910 foi criada a Assembléia Geral, sendo eleito seu primeiro moderador o Rev. Álvaro Reis, pastor da I. P. do Rio de Janeiro, por muitos anos a maior igreja evangélica do Brasil (quando Reis faleceu, em 1925, a igreja tinha mais de 2.600 membros). Em 1917, foi firmado com as missões norte-americanas um acordo conhecido como Modus Operandi ou Brazil Plan, mediante o qual os missionários começaram a retirar-se dos presbitérios brasileiros. Até cerca de 1925, a IPB foi a maior denominação evangélica do Brasil, tendo grande crescimento em regiões como o leste de Minas Gerais. Seus principais órgãos eram a Revista das Missões Nacionais (1887) e especialmente O Puritano (1899).

2.3 Igreja Presbiteriana Independente

A IPI surgiu em 1903 como uma denominação inteiramente nacional, sem qualquer vínculo com igrejas estrangeiras. Resultou do projeto nacionalista do Rev. Eduardo Carlos Pereira (1856-1923). Em 1907, a IPI tinha 56 igrejas e 4.200 membros comungantes. Fundou um seminário em São Paulo. Em 1908 foi instalado o Sínodo, inicialmente com três presbitérios. O Estandarte, fundado em 1893, era o seu periódico oficial. Após o Congresso do Panamá (1916), a IPI aproximou-se da IPB e das outras igrejas evangélicas, tendo participado de muitos projetos cooperativos daquela época.

2.4 Igreja Metodista

A Conferência Anual Brasileira foi organizada no Rio de Janeiro em 15-09-1886 pelo bispo John C. Granbery, enviado pela Igreja Metodista Episcopal do Sul. Tinha apenas três missionários, James L. Kennedy, John W. Tarboux e Hugh C. Tucker, sendo a menor conferência anual já criada na história do metodismo. Em 1899, a I.M.E. do Norte transferiu seu trabalho no Rio Grande do Sul para a Conferência Anual. Em 1910 e 1919 surgiram outras duas conferências, passando a existir três: norte, sul e centro.

A Junta de Nashville interferia na vida da igreja de modo indevido, segundo os brasileiros, culminando com a insistência em nomear o presidente do Colégio Granbery (1917). Isso fez crescer o movimento pelo sustento próprio, liderado por Guaracy Silveira. Em 1930 a I.M.E. do Sul cedeu a autonomia desejada. No dia 02-09-1930, na Igreja Metodista Central de São Paulo, foi organizada a Igreja Metodista do Brasil. O primeiro bispo eleito foi o velho missionário John William Tarboux.

2.5 Igreja Batista

A Convenção Batista Brasileira foi organizada no dia 24-06-1907 na Primeira Igreja Batista da Bahia (Salvador), quando 43 delegados, representando 39 igrejas, aprovaram a “Constituição Provisória das Igrejas Batistas do Brasil”. A partir dessa época, a Igreja Batista passou a ter acentuado crescimento em relação às outras denominações tradicionais.

Na década de 1920, surgiu a chamada “questão radical”. Os líderes batistas do nordeste apresentaram um memorial aos missionários (1922) e um manifesto à Convenção (1925) reivindicando maior participação nas decisões, principalmente na área financeira. Não atendidos, mais tarde organizaram-se como uma facção separada da Convenção e da Junta de Missões. As bases de cooperação entre a igreja brasileira e a Junta de Richmond voltaram a ser discutidas em 1936 e 1957.

2.6 Igreja Luterana

O Sínodo Rio-Grandense surgiu em 1886. Posteriormente, surgiram outros sínodos autônomos: o Sínodo da Caixa de Deus ou “Igreja Luterana” (1905), com forte ênfase confessional; o Sínodo Evangélico de Santa Catarina e Paraná (1911) e o Sínodo Brasil Central (1912). O Sínodo Rio-Grandense, ligado à Igreja Territorial da Prússia, filiou-se à Federação Alemã das Igrejas Evangélicas em 1929. Em 1932, o Sínodo Luterano também se filiou à federação e começou a aproximar-se dos outros sínodos. Em 1939, o Estado Novo (governo de Getúlio Vargas) exigiu que toda pregação pública fosse feita em português.

2.7 Igreja Episcopal

Uma Convocação especial reunida em Porto Alegre em 30-05-1898 definiu a relação formal entre a missão e a Igreja Episcopal dos Estados Unidos, elegendo Lucien Lee Kinsolving como o primeiro bispo residente da igreja brasileira. Kinsolving foi sagrado bispo em Nova York em 06-01-1899, sendo o único bispo episcopal no Brasil até 1925.

3. Segundo período (1930-1964)

Nesse período, que vai do Estado Novo de Getúlio Vargas até o início do regime militar em 1964, as igrejas protestantes em sua maior parte já haviam se tornado independentes das suas igrejas-mães estrangeiras. Nessas décadas, a situação relativa dos diferentes grupos sofreu uma alteração radical, com o acelerado crescimento das igrejas pentecostais, que ultrapassaram em muito as denominações históricas.

Os estudiosos falam em três ondas do pentecostalismo brasileiro: (a) Décadas de 1910-1940: chegada simultânea da Congregação Cristã no Brasil e da Assembléia de Deus, que dominaram o campo pentecostal por 40 anos; (b) Décadas de 1950-1960: o campo pentecostal se fragmentou, surgindo novos grupos – Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor e muitos outros (contexto paulista); (c) Anos 70 e 80: surge o neopentecostalismo – Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus e outras (contexto carioca). Vejamos os principais grupos das duas primeiras “ondas” pentecostais:

(a)   Congregação Cristã no Brasil: foi fundada pelo italiano Luigi Francescon (1866-1964). Radicado em Chicago, foi membro da Igreja Presbiteriana Italiana e aderiu ao pentecostalismo em 1907. Em 1910 (março-setembro) visitou o Brasil e iniciou as primeiras igrejas em Santo Antonio da Platina (PR) e São Paulo, entre imigrantes italianos. Veio 11 vezes ao Brasil até 1948. Em 1940, o movimento tinha 305 “casas de oração” e dez anos mais tarde 815.

(b)   Assembléia de Deus: a Assembléia de Deus brasileira foi fundada pelos suecos Daniel Berg (1885-1963) e Gunnar Vingren (1879-1933). Originalmente batistas, abraçaram o pentecostalismo em 1909 nos Estados Unidos. Conheceram-se numa conferência pentecostal em Chicago. Assim como Luigi Francescon, Berg foi influenciado pelo pastor batista William H. Durham, que participou do avivamento de Los Angeles (1906). Sentindo-se chamados para trabalhar no Brasil, chegaram a Belém em novembro de 1910. Seus primeiros adeptos foram membros de uma igreja batista com a qual colaboraram.

(c)    Igreja do Evangelho Quadrangular: foi fundada nos Estados Unidos pela evangelista Aimee Semple McPherson (1890-1944). O missionário Harold Williams fundou a primeira IEQ do Brasil em novembro de 1951, em São João da Boa Vista, São Paulo. Em 1953 teve início a Cruzada Nacional de Evangelização, sendo Raymond Boatright o principal evangelista. A igreja enfatiza quatro aspectos do ministério de Cristo: aquele que salva, batiza com o Espírito Santo, cura e virá outra vez. As mulheres podem exercer o ministério pastoral.

(d)   Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo: foi fundada por Manoel de Mello, um evangelista da Assembléia de Deus que depois tornou-se pastor da IEQ. Separou-se da Cruzada Nacional de Evangelização em 1956, organizando a campanha “O Brasil para Cristo,” da qual surgiu a igreja. Filiou-se ao Conselho Mundial de Igrejas em 1969 e desligou-se em 1986. Em 1979 inaugurou seu grande templo no bairro da Água Branca, em São Paulo, sendo orador oficial Philip Potter, secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas. Na inauguração, esteve presente o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Manoel de Mello morreu em 1990.

Quanto às denominações históricas, destacamos alguns aspectos de sua trajetória nesse novo período:

3.1 Congregacional

Os congregacionais se uniram à Igreja Cristã Evangélica em 1942, formando a União das Igrejas Congregacionais e Cristãs do Brasil. Separaram-se em 1969, tomando o nome de União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. A outra ala dividiu-se em duas, a Igreja Cristã Evangélica no Brasil (Anápolis) e a Igreja Cristã Evangélica do Brasil (São Paulo), que mais tarde se uniram. O crescimento desses grupos foi pequeno, representando uma parcela cada vez menor do protestantismo brasileiro.

3.2 Presbiteriana

Com a nova Constituição da Igreja, aprovada em 1937, foi criado o Supremo Concílio da IPB. Um novo desafio para a igreja foi como posicionar-se em relação aos novos organismos ecumênicos que estavam se formando. Em 1948, Samuel Rizzo representou a IPB na Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas em Amsterdã. No ano seguinte, a igreja optou pela “equidistância” entre o CMI e o Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, do líder fundamentalista norte-americano Carl McIntire. Em 1962, o Supremo Concílio aprovou o “Pronunciamento Social da IPB”.

Entre os jovens, surgiu um questionamento da posição conservadora da igreja. O jornalMocidade foi lançado em 1944 e dois anos depois Billy Gammon tornou-se a secretária nacional da mocidade. Até 1958 o número de UMPs cresceu de 150 para 600, com 17 mil membros. O Rev. M. Richard Shaull veio ao Brasil trabalhar entre os universitários. Em 1953 tornou-se professor do Seminário de Campinas e começou a cooperar com o Departamento de Mocidade e a União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB). Tornou-se uma voz influente na mocidade evangélica brasileira. Em 1962, o Supremo Concílio reestruturou o Departamento de Mocidade, tirando sua autonomia.

Nos anos 50, Israel Gueiros, pastor da 1ª I. P. de Recife e ligado ao Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, liderou uma campanha contra o Seminário do Norte sob a acusação de modernismo. Fundou outro seminário e foi deposto pelo Presbitério de Pernambuco em julho de 1956. Em 21 de setembro foi organizada a Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil com quatro igrejas locais (incluindo elementos batistas e congregacionais), que formaram um presbitério com 1800 membros.

3.3 Presbiteriana Independente

A partir de 1930, surgiu um movimento de intelectuais (entre eles o Rev. Eduardo Pereira de Magalhães, neto de Eduardo Carlos Pereira) que pretendia reformar a liturgia, certos costumes eclesiásticos e até mesmo a Confissão de Fé. A questão eclodiu no Sínodo de 1938. Outro grupo organizou a Liga Conservadora, liderada pelo Rev. Bento Ferraz. A elite liberal retirou-se da IPI em 1942 e formou a Igreja Cristã de São Paulo. Em 1957 foi criado o Supremo Concílio da IPI, com três sínodos, dez presbitérios, 189 igrejas locais e 105 pastores.

Em 1940, os membros da Liga Conservadora fundaram a Igreja Presbiteriana Conservadora, que em 1957, contava com mais de vinte igrejas, em quatro estados, e tinha um seminário. Seu órgão oficial era O Presbiteriano Conservador. Filiou-se à Aliança Latino-Americana de Igrejas Cristãs e à Confederação de Igreja Evangélicas Fundamentalistas do Brasil.

3.4 Metodista

O primeiro bispo metodista brasileiro foi César Dacorso Filho (1891-1966), eleito em 1934, que por doze anos (1936-1948) foi o único bispo da Igreja. A Igreja Metodista foi a primeira denominação brasileira a filiar-se ao Conselho Mundial de Igrejas, em 1942. Seu órgão oficial era O Expositor Cristão. O crescimento dessa denominação foi pequeno, sendo uma de suas principais ênfases a educação.

3.5 Luterana

Em 1949 os quatro sínodos luteranos organizaram-se em Federação Sinodal, a Igreja Luterana propriamente dita. No ano seguinte, a igreja solicitou admissão ao Conselho Mundial de Igrejas e em 1954 adotou o nome de Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). A Igreja Luterana filiou-se à Confederação Evangélica do Brasil em 1959. Foi nesse período que a igreja se nacionalizou, deixando de estar voltada apenas para o seu grupo étnico original.

3.6 Episcopal

O primeiro bispo brasileiro foi Athalício Theodoro Pithan, sagrado em 21-04-1940. Em abril de 1952, foi instalado o Sínodo da Igreja Episcopal Brasileira, contando com três bispos (Athalício T. Pithan, Luís Chester Melcher e Egmont Machado Krischke). Em 25-04-1965 a Igreja Episcopal do Brasil obteve da igreja-mãe a sua plena emancipação administrativa e passou a ser uma província autônoma da Comunhão Anglicana. Logo em seguida, filiou-se ao CMI.

4. Terceiro período (1964-2000)

Dois eventos de grande impacto marcaram o início deste período: (a) O Concílio Vaticano II (1962-65), que assinalou a abertura da Igreja Católica para os protestantes (“irmãos separados”) e revelou novas concepções sobre o culto, a missão da igreja e a relação com a sociedade. O ecumenismo tornou-se alvo de muitas controvérsias. (b) O movimento de 1964 e o regime militar. Na realidade, esse período foi marcado pelo surgimento de ditaduras militares e movimentos de esquerda em toda a América Latina. Na área religiosa, um dos resultados foi o surgimento da Teologia da Libertação. Vejamos alguns eventos desse período conturbado:

4.1 Igreja Presbiteriana

Em 1962, a Missão Brasil Central (UPCUSA) propôs-se a entregar à Igreja toda a sua obra evangelística, médica e educacional. Em 1972, a IPB rompeu com a Missão Brasil Central, sendo uma das possíveis causas a adoção da Confissão de 1967 pela Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos. Em 1973, a IPB rompeu suas relações com essa denominação (criada em 1958) e firmou novo convênio com a missão da Igreja Presbiteriana do Sul (PCUS).

O Supremo Concílio de Fortaleza (1966) marcou o início da administração do Rev. Boanerges Ribeiro, que foi reeleito presidente em 1970 e 1974. Nesse período, a maioria conservadora empreendeu forte luta contra o liberalismo teológico, o  ecumenismo e a renovação carismática. Foi uma época de forte confrontação, com muitos processos contra pastores, concílios e igrejas locais. No entanto, o período também testemunhou crescimento na área de missões. A IPB expandiu o seu trabalho na Amazônia e em alguns países vizinhos, como o Paraguai e a Bolívia.

Com o passar dos anos, surgiram alguns grupos dissidentes, como o Presbitério de São Paulo e a Aliança de Igrejas Reformadas (1974), e a Federação Nacional de Igrejas Presbiterianas (FENIP), organizada em Atibaia, em setembro de 1978. Esta federação eventualmente constituiu-se em uma nova denominação, a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, que possuindo uma orientação teológica fortemente progressista. Em 1999, faleceu um de seus líderes mais conhecidos, o Rev. Jaime Wright, que foi muito atuante na área de direitos humanos.

4.2 Igreja Presbiteriana Independente

Com uma postura inicialmente menos rígida que a IPB, a partir de 1972 a IPI tornou-se mais inflexível quanto ao ecumenismo e à renovação carismática. Em 1978, essa denominação admitiu aos seus presbitérios os três primeiros missionários estrangeiros da sua história, Richard Irwin, Albert James Reasoner e Gordon S. Trew, que antes colaboravam com a IPB.

Em 1973, um segmento da IPI separou-se para formar a Igreja Presbiteriana Independente Renovada, que depois se uniu a um grupo semelhante egresso da IPB, formando a Igreja Presbiteriana Renovada, de orientação carismática.

Nos últimos anos, a IPI tem abraçado uma postura teológica mais aberta, estreitando os seus laços com a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos e aceitando o ministério feminino. Há alguns anos, um documento denominado Ordenações Litúrgicas produziu tantas controvérsias que precisou ter a sua aplicação suspensa pela igreja.

4.3 Igreja Batista

Acentuadamente conservadora nas áreas de teologia e política, a Convenção Batista Brasileira tem dado grande ênfase à obra missionária. Nos anos 60 e 70 foram realizadas grandes campanhas evangelísticas. Em 1960, Billy Graham pregou no Maracanã durante o X Congresso da Aliança Batista Mundial. O Pr. João Filson Soren (da 1ª Igreja Batista do Rio) foi eleito presidente da Aliança. Em 1965, foi realizada a Campanha Nacional de Evangelização, como uma espécie de resposta ao golpe de 1964. Seu tema foi  “Cristo, a Única Esperança”, implicando que as soluções meramente políticas eram insuficientes. O coordenador da campanha foi o Pr. Rubens Lopes (I. B. Vila Mariana). Em 1967-1970 houve a Campanha das Américas e, em 1974, a Cruzada de Billy Graham no Rio de Janeiro. Seu presidente foi o Pr. Nilson do Amaral Fanini. Em 1978-1980 foi realizada a Campanha Nacional de Evangelização.

O grande ímpeto evangelístico explica o acentuado crescimento da Convenção Batista Brasileira, que no ano 2000 contava com mais de 1,5 milhão de membros. A Convenção também tem realizado um amplo trabalho missionário no exterior, com mais de 500 missionários em 52 países. Outros grupos batistas expressivos são a Igreja Batista Nacional (renovada), Igreja Batista Regular e Igreja Batista Independente.

4.4 Igreja Metodista

No início dos anos 60, Nathanael Inocêncio do Nascimento, reitor da Faculdade de Teologia de Rudge Ramos, liderou o “esquema” nacionalista que visava substituir os líderes missionários do Gabinete Geral por brasileiros (saíram Robert Davis e Duncan A. Reily e entraram Almir dos Santos e Omar Daibert, futuros bispos).

Os universitários e estudantes de teologia pleiteavam uma igreja mais voltada para a ação social e a política. A ênfase na justiça social dominou a Junta Geral de Ação Social (Robert Davis, Almir dos Santos) e a Faculdade de Teologia. Dom Helder Câmara paraninfou a turma de 1967. No ano seguinte, uma greve levou ao fechamento da Faculdade de Teologia e à sua reestruturação.

Nos anos 70 a IMB investiu na educação superior. No campus da antiga Faculdade de Teologia surgiu o Instituto Metodista de Ensino Superior e em 1975 o Instituto Piracicabano (fundado em 1881) foi transformado em Universidade Metodista de Piracicaba. Em 1982 foi elaborado o Plano Nacional de Educação Metodista, cuja fundamentação deu ênfase ao conceito do Reino de Deus e à teologia da libertação. O movimento carismático também encontrou acolhida em muitas comunidades metodistas.

4.5 Igreja Luterana

Em 1968, os quatro sínodos, originalmente independentes um do outro, integraram-se em definitivo na IECLB, aceitando uma nova constituição. No VII Concílio Geral (outubro de 1970) foi aprovado unanimemente o “Manifesto de Curitiba”, contendo o posicionamento político-social da igreja. Esse manifesto foi entregue ao presidente Emílio Garrastazu Médici por três pastores. Em 1975 entrou em vigor a reforma do currículo da faculdade de teologia de São Leopoldo, refletindo as prioridades da igreja. A Igreja Evangélica Luterana, ligada ao Sínodo de Missouri, é mais conservadora que a IECLB.

As últimas décadas do século 20 testemunharam um fracionamento ainda maior do protestantismo brasileiro, com o surgimento de muitos grupos neopentecostais. Dentre esses grupos, destacam-se a Igreja Deus é Amor e especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o maior fenômeno religioso contemporâneo em nosso país. Vejamos alguns dados dessas igrejas:

(a)   Igreja Deus é Amor

Seu fundador é David Miranda (nascido em 1936), filho de um agricultor do Paraná. Vindo para São Paulo, converteu-se numa pequena igreja pentecostal e em 1962 fundou sua igreja em Vila Maria. Logo transferiu-se para o centro da cidade (Praça João Mendes). Em 1979, foi adquirida a “sede mundial” na Baixada do Glicério, o maior templo evangélico do Brasil, com capacidade para dez mil pessoas. Em 1991 a igreja afirmava ter 5.458 templos, 15.755 obreiros e 581 horas diárias em rádios, bem como estar presente em 17 países (principalmente no Paraguai, Uruguai e Argentina). A Igreja Deus é Amor dá preferência exclusiva ao uso do rádio como meio de divulgação, não se utilizando da televisão.

(b)   Igreja Universal do Reino de Deus

Foi fundada por Edir Macedo (nascido em 1944), filho de um comerciante fluminense. Macedo trabalhou por 16 anos na Loteria do Estado (subiu de contínuo para um posto administrativo). De origem católica, ingressou na Igreja de Nova Vida na adolescência. Deixou essa igreja para iniciar a sua própria, inicialmente denominada Igreja da Bênção. Em 1977 deixou o emprego público para dedicar-se ao trabalho religioso. Nesse mesmo ano surgiu o nome IURD e o primeiro programa de rádio. Macedo viveu nos EUA de 1986 a 1989. Voltando ao Brasil, transferiu a sede da igreja para São Paulo e adquiriu a Rede Record. Em 1990 a IURD elegeu três deputados federais. Macedo esteve preso por doze dias em 1992, sob a acusação de estelionato, charlatanismo e curandeirismo. A IURD também investe maciçamente no exterior, atuando em mais de 70 países.

Outros conhecidos grupos neopentecostais são a Igreja Renascer em Cristo (do “apóstolo” Estevam Hernandes), a Igreja Internacional da Graça de Deus (do pastor Romildo Soares, cunhado de Edir Macedo), a Igreja Sara Nossa Terra e as Comunidades Evangélicas.

Conclusão

A história do protestantismo brasileiro no período republicano é uma história de notável crescimento e crescente visibilidade social. Nesse longo período, as igrejas evangélicas deram importantes contribuições a indivíduos, famílias e à sociedade nas áreas evangelística, educacional e ética. Infelizmente, é também uma história de lamentáveis divisões e, particularmente nos últimos anos, de um testemunho questionável e valores distorcidos. Trabalhemos e oremos para que a fé evangélica produza em nosso país os seus melhores frutos no século 21.

Sugestões bibliográficas

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Tarsier, Pedro. História das Perseguições Religiosas no Brasil. 2 vols. Editora Cultura Moderna.


ERASMO BRAGA: UM LÍDER SINGULAR NO PROTESTANTISMO BRASILEIRO


Alderi Souza de Matos

A história do protestantismo deve os seus maiores feitos à atuação de indivíduos que se destacaram por sua inteligência, energia, visão e capacidade de mobilizar os seus correligionários em torno de grandes causas. Desde o século 16, a Europa, a América do Norte e até mesmo algumas regiões do hemisfério sul têm revelado muitos exemplos notáveis desses grandes líderes. No Brasil, todavia, o movimento protestante tem sido pobre em termos de personalidades cuja atuação tenha exercido uma influência salutar e construtiva sobre as igrejas em geral. O que tem ocorrido no ambiente evangélico parece ser o oposto: líderes que, apesar das suas qualificações e das expectativas que despertam, não têm se mostrado à altura das suas posições e responsabilidades, causando decepção e desalento. Porém, nas primeiras décadas do século 20 viveu um personagem excepcional que hoje é considerado o maior líder do protestantismo brasileiro em toda a sua história.

1. Experiências iniciais

Erasmo de Carvalho Braga (1877-1932) era filho do Rev. João Ribeiro de Carvalho Braga e de D. Alexandrina Braga. Nasceu em Rio Claro, no interior de São Paulo, uma região que experimentava grande progresso em virtude do cultivo do café. A Igreja Presbiteriana, à qual a família pertencia, era na época a maior denominação evangélica do Brasil, experimentando grande crescimento. Após estudar em Botucatu, para onde os pais haviam se mudado, o menino concluiu os estudos secundários na Escola Americana, em São Paulo, e ingressou no Seminário Presbiteriano. Foi ordenado pastor em 1898, iniciando o seu ministério em Niterói. Três anos depois regressou à capital paulista, tendo sido convidado para lecionar no Mackenzie College, uma grande escola missionária. Também se tornou professor do seminário em que havia se formado, acompanhando essa instituição quando a mesma se transferiu para Campinas em 1907.

Nesse período e nos anos seguintes ele revelou algumas características marcantes. Tinha grande inteligência, memória privilegiada e enorme capacidade de trabalho. Era um leitor insaciável, estando a par de quase tudo o que era publicado no Brasil e no exterior. As pessoas começaram a referir-se a ele como uma “enciclopédia ambulante”. Também possuía qualidades de caráter e temperamento que atraíam prontamente a simpatia dos que o conheciam: integridade, cortesia, altruísmo, generosidade. Além de pastor dedicado e professor competente, destacou-se na área do jornalismo, tendo colaborado com muitos periódicos religiosos e seculares. Tornou-se sócio, com freqüência sócio-fundador, de diversas entidades literárias, científicas e de serviços. Em 1910, começou a escrever a famosa Série Braga, livros de leitura para a escola primária que vieram a ser usados por muitos anos em todo o Brasil. Na mesma época, mediante concurso, conquistou a cadeira de inglês do Ginásio do Estado, em Campinas.

2. Um ponto de transição

Desde o início do seu ministério, Erasmo Braga vinha observando com interesse alguns movimentos do protestantismo anglo-saxão voltados para missões e cooperação intereclesiástica. Em 1910, quando a Conferência Missionária Mundial se reuniu em Edimburgo, na Escócia, as missões na América Latina não foram contempladas por se entender que esse continente já era cristão. Em reação a isto, foi criado três anos mais tarde o Comitê de Cooperação na América Latina (CCAL), que promoveu em 1916 o célebre Congresso da Obra Cristã na América Latina, na Cidade do Panamá. Essa foi a primeira vez que os protestantes ibero-americanos se reuniram para discutir o seu trabalho. Erasmo Braga participou desse encontro e foi profundamente impactado pelo mesmo.

Regressando ao Brasil, ele abraçou de modo crescente as propostas resultantes do Congresso do Panamá: cooperação evangélica, envolvimento social, testemunho cristão na sociedade, educação teológica de alto nível, evangelização das elites. A fim de participar desses projetos, afastou-se gradativamente da maior parte dos seus compromissos denominacionais. Em 1920, assumiu em tempo integral a direção de uma sucursal do CCAL criada no Rio de Janeiro – a Comissão Brasileira de Cooperação (CBC). Nessa função, que exerceu até a sua morte em 1932, Erasmo Braga se tornou o propulsor do maior esforço de aproximação e cooperação das igrejas evangélicas do Brasil empreendido até hoje. Ele não só foi o líder protestante brasileiro mais conhecido do seu tempo, mas representou o Brasil e a América Latina em inúmeros encontros do protestantismo mundial em outros continentes. Nesses encontros, ele patrocinou de modo competente e apaixonado os interesses do trabalho evangélico na América Latina.

3. Visão missiológica

Nos seus esforços e iniciativas, Erasmo associou a sua formação calvinista a alguns elementos positivos de movimentos como o “evangelho social”, tendo em vista formular um projeto grandioso e ousado para as igrejas evangélicas. Analisando cuidadosamente a história das nações latinas, ele concluiu que elas haviam recebido uma formação inadequada nos aspectos religioso, social e cultural. Por sua vez, as nações protestantes haviam herdado da Reforma do século 16 um cristianismo dinâmico, valores éticos, instituições democráticas, ênfase na educação, progresso econômico e social. Ele concluiu que somente a mensagem e os valores transmitidos pelas igrejas evangélicas poderiam livrar os povos latino-americanos dos profundos problemas que os afligiam: atraso, analfabetismo, ignorância, superstição, ceticismo. Na elaboração dessa proposta, um tema bíblico e teológico se tornou dominante – o “reino de Deus”. O objetivo das igrejas evangélicas seria pregar e viver o evangelho com tal intensidade a ponto de gerar uma profunda transformação da sociedade: a implantação do reino de Deus na terra.

Havia alguns requisitos para que as igrejas pudessem cumprir esse papel. Elas deviam desfazer-se do seu complexo de inferioridade e atitude de isolamento, irmanando-se umas às outras e criando laços com as igrejas mais antigas do hemisfério norte; elas deviam dispor-se a ter uma presença forte e envolvente na comunidade; elas precisavam atualizar os seus métodos e falar uma linguagem com que as pessoas pudessem se identificar. Durante alguns anos, os apelos de Erasmo receberam diferentes graus de receptividade nas denominações protestantes históricas: presbiterianos, metodistas, congregacionais, episcopais. Porém, com o passar do tempo a mentalidade paroquial, as diferenças doutrinárias, o temor do envolvimento na sociedade e outros fatores levaram a um certo esfriamento do trabalho cooperativo. Problemas ocorridos nos Estados Unidos também tiveram um impacto negativo: a crise econômica de 1929, a controvérsia modernista-fundamentalista e novas percepções acerca da missão da igreja.

4. Avaliação e contribuições

Erasmo Braga viveu apenas 55 anos, tendo a sua morte prematura resultado em parte do desgaste sofrido no trabalho cooperativo. O lema de sua vida e ações foi o texto de Romanos 14.7: “Nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si”. Seu caráter nobre e idealista, dedicação a Cristo e espírito conciliador o qualificaram para criar um ambiente mais fraterno e generoso no protestantismo brasileiro da época. Seu desejo intenso de que o evangelho redimisse os indivíduos e a sociedade motivou as igrejas a se envolverem de modo coerente, altruísta e criativo com o seu país e o seu povo. Ele pode ter sido um tanto ingênuo em algumas de suas expectativas, excessivamente otimista em relação a certos problemas, mas ninguém jamais questionou a seriedade, sinceridade e dedicação com que buscou os seus objetivos.




Além do seu testemunho nas muitas entidades de que participou e de suas importantes contribuições como educador, escritor e pensador protestante, Erasmo se envolveu em iniciativas valiosas como o Seminário Unido (Rio de Janeiro), a Federação Universitária Evangélica e a Missão Evangélica Caiuá. Seu trabalho principal resultou na Confederação Evangélica do Brasil, que preservou por muitos anos o ideal da cooperação evangélica. Seus livros e outros escritos continuam relevantes, em especial Pan-americanismo: aspecto religioso e A República do Brasil: uma análise da situação religiosa. Que Deus possa despertar líderes competentes, íntegros e idealistas como Erasmo Braga no conturbado cenário protestante brasileiro.

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